A gestão Ricardo Nunes (MDB) acelerou o número de cirurgias de endometriose realizadas na rede municipal de São Paulo neste ano de eleições municipais.
Em 2021, primeiro ano do governo Bruno Covas e Nunes, 87 cirurgias do tipo foram feitas na rede. Em 2022, foram 180. O número caiu para 89 em 2023 e saltou para 313 no período de janeiro a agosto deste ano, em meio à pré-campanha eleitoral. Os dados foram obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação) e, de acordo com a prefeitura, indicam que a fila pela cirurgia de endometriose foi zerada em São Paulo.
Desse total de cirurgias desde 2021, mais de metade (342) foi realizada no Hospital Municipal e Maternidade Vila Nova Cachoeirinha.
Em dezembro de 2023, a unidade, até então referência no serviço de aborto legal, encerrou os atendimentos de interrupção da gravidez com a justificativa de que era necessário dar espaço a uma demanda reprimida de cirurgias envolvendo a saúde da mulher. Segundo a gestão Nunes disse à época, o hospital Cachoeirinha seria o mais adequado para operações de endometriose.
Mesmo com a fila da endometriose zerada, porém, não há previsão de que o serviço de aborto legal seja retomado na unidade de referência. Procurada, a Secretaria Municipal da Saúde disse que o Hospital Vila Nova Cachoeirinha “neste momento está referenciado para a realização de cirurgia intrauterina (cirurgia no feto por questões congênitas) e de procedimentos voltados à saúde da mulher na cidade”.
A pasta afirmou ainda que os abortos previstos em lei são oferecidos no hospital Dr. Cármino Caricchio (Tatuapé), Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo), Hospital Municipal Tide Setúbal e Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mário Degni (Jardim Sarah).
Na avaliação de especialistas ouvidos pela reportagem, a manutenção do serviço de aborto legal não atrapalharia o fluxo de cirurgias no Vila Nova Cachoeirinha. Isso porque os procedimentos costumam ser feitos com o uso de medicamentos e, mesmo em casos de intervenção, não costumam necessitar de internação, afirma a médica Helena Paro.
Integrante da Figo (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia) e professora de medicina que atua no serviço de abortamento legal da UFU (Universidade Federal de Uberlândia), ela avalia que a suspensão tenha sido um cálculo para agradar alas mais conservadoras do eleitorado. “Há um medo grande de enfrentar esse debate.”
O Vila Nova Cachoeirinha era o único a realizar o aborto legal acima das 22 semanas na capital. Além disso, contava com médicos especializados no assunto —contra os quais o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) encabeçou uma ofensiva. Em 2023, até o encerramento do serviço em dezembro, a unidade havia realizado 124 das 158 interrupções de gestação da rede municipal.
No Brasil, o aborto é permitido por lei em casos de estupro, de risco de morte para a mulher e em caso de anencefalia do feto. Não há limite de idade gestacional definido.
Diante de dados com os do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que apontam que os registros de estupros cresceram 6,5% de 2022 para 2023 (no ano passado foram registrados quase 84 mil estupros no país), a médica Helena Paro alerta para a possibilidade de aumento também de casos de gravidez fruto de violência, o que evidencia a urgência da oferta do serviço de aborto legal.
A suspensão do serviço no Vila Nova Cachoeirinha fez meninas vítimas de estupro buscarem aborto em outros estados, como mostrou a Folha. Até outubro deste ano foram registrados 2.215 casos de estupro na cidade de São Paulo, segundo dados da SSP (Secretaria da Segurança Pública).
A interrupção do serviço de aborto legal no Vila Nova Cachoeirinha antecedeu uma resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que vetava assistolia fetal, procedimento padrão ouro recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para gravidez acima de 22 semanas de mulheres vítimas de estupro.
A resolução acabou suspensa pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes até o julgamento final da controvérsia. A medida do CFM, contudo, foi motor para o PL Antiaborto por Estupro, que pretende fixar um teto de 22 semanas na interrupção de gestações por estupro quando houver viabilidade fetal, aumentando a pena para quem realizar o procedimento (médico ou gestante) depois desse período.
Após pressão da sociedade civil, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), disse que debates sobre o tema deveriam ser feitos antes de qualquer decisão dos parlamentares.
Além dos quatro hospitais citados pela gestão Nunes, os serviços de aborto legal têm sido realizados no Hospital da Mulher, administrado pelo governo do estado. A unidade internou a maioria das pessoas que precisaram do serviço nos últimos anos, conforme o DataSUS, e tem feito o procedimento em casos de gestações acima das 22 semanas.
Em outubro, a Folha mostrou que o prefeito Ricardo Nunes omitiu a restrição ao aborto legal na rede municipal e a terceirização do procedimento para o Governo de São Paulo.
Principal fiador da campanha de Nunes à reeleição, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) saiu em socorro do município e assumiu o fluxo dos atendimentos. De acordo com a secretaria de comunicação da prefeitura, o que houve foi uma “parceria” com a gestão Tarcísio para realizar abortos nas gestações acima de 22 semanas na rede estadual.