Como tratar uma doença quando os cientistas nem conseguem chegar a um acordo sobre o que é a doença? Sem definição precisa, diagnosticar é uma dificuldade, claro —mas tratar o que não se entende também fica complicado. Não ajuda nem um pouco ter que lidar com as mídias sociais bombardeando quem tem a doença na família com promessas de células-tronco e outros tratamentos suspeitamente miraculosos, o que só piora sob a pressão amigos e parentes bem-intencionados e “conectados”. Claro que a gente quer tentar de tudo. Mas como tempo e dinheiro são bens escassos, em algum ponto, há que se dizer: basta! Onde?
A Neurocientista de Plantão vem ao auxílio de quem está passando por isso, aproveitando para atender ao pedido da Daniela, minha melhor amiga, cujo pai de 81 anos está em declínio bem visível. Meu melhor amigo aqui nos EUA, um cientista de 86 anos perfeitamente lúcido que vem trabalhar todos os dias, também lida com a esposa de também 81 que agora não o reconhece mais. Com ou sem definição conclusiva, a doença de Alzheimer é uma realidade crescente na nossa sociedade onde cada vez mais gente chega perto dos cem anos de vida.
Mas o que se entende da doença faz toda a diferença. Não, Alzheimer não é “perda de memória causada por acúmulo de placas amiloides no cérebro”; a severidade da perda de memória não é simplesmente uma função da quantidade dessas placas, e, como se isso não bastasse, um bocado de gente anda por aí com essas placas e sem qualquer sinal de perda de memória. Talvez “perda extrema de sinapses que começa no hipocampo, a parte do cérebro responsável por formar memórias novas, que se espalha, se agrava, e vira perda de massa cerebral, enquanto a memória recente vai junto”. Digamos que seja isso.
Com o hipocampo perdendo suas conexões, associações novas não entram para a memória. As perguntas e piadas se repetem, os copos vão se espalhando pela casa, o banho diário some no buraco negro que engole a agenda mental de cada dia.
Junto com as conexões no hipocampo se perdem gradualmente também as memórias mais recentes, e com isso o doente tem o registro cerebral da sua história de vida desfeito aos poucos, começando pelos eventos mais recentes. Quem acompanha de perto testemunha os anos se apagando. A esposa do meu amigo, que eu visito regularmente há 18 anos, não me reconhece mais —mas ainda lembra dos amigos de 30 anos atrás, quando veio para Nashville.
Entender que a doença de Alzheimer não bloqueia memórias, e sim as desfaz, é triste mas fundamental. Não há célula-tronco hipotética que recupere conexões formadas e lapidadas pela história de vida de cada um; no máximo, essas células —que teriam que ser injetadas diretamente no hipocampo— providenciariam a mesma ajuda que acrescentar mais folhas vazias ao bloquinho onde você faz anotações novas.
O mesmo vale para injeções de anticorpos que supostamente reduzem placas de amiloide no cérebro, ou, o que é de fato eficaz, drogas que amplificam a transmissão sináptica de sinais. O que ainda for dificuldade de acesso a memórias registradas em sinapses ainda existentes talvez ainda possa ser resgatado, mas a melhor esperança de tratamento é apenas parar a doença. Para recuperar as memórias perdidas, só vivendo a mesma vida novamente.
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