A coordenadora Elen Maria Rodrigues, 45, lembra há um ano daquele fatídico 1º de novembro, e reflete: “hoje, eu faria diferente e iria ao hospital ao menor sinal de mal-estar”.
Ela se refere ao infarto que sofreu, aos 44 anos, e que, por não ter a manifestação típica dos sintomas, levou 20 dias para buscar atendimento médico, quando o lado esquerdo do seu coração já tinha sofrido uma lesão grave e uma das principais artérias do coração já estava 90% obstruída.
“O mal-estar teve início com uma dor entre o peito e o estômago, mas que passava em menos de um minuto, todos os dias, mais ou menos no mesmo horário, por volta do meio-dia. No dia que fui ao hospital, eu senti também ânsia, calor intenso e formigamento nos braços, mas em nenhum momento achei que era um infarto”, disse.
Ela foi atendida no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na região central de São Paulo onde, após alguns exames, o médico informou do infarto sofrido e disse que por mais um pouco ela poderia ter morrido.
Após sete dias de internação, um cateterismo (inserção de um cateter por meio de um tubo cuja função é desobstruir os vasos do coração) e um stent (“mola” que mantém aberta a artéria, impedindo sua obstrução), Rodrigues encara a vida de forma diferente, dedicando mais atenção à sua condição. “Meus filhos já são adultos, mas eu sempre fui responsável pelo cuidado deles, do meu marido, da casa, e acabava negligenciando a minha saúde, o meu bem-estar.”
Segundo uma pesquisa global com dados de mais de 250 milhões de pacientes em 120 instituições, à qual a Folha teve acesso, o caso dela não é isolado: o risco de morte de 30 dias a um ano após um infarto é maior em mulheres do que em homens.
Os motivos que levam a essa diferença podem ser biológicos, como a manifestação de sintomas de infarto pouco típicos nas mulheres, que costumam apresentar sintomas mais leves, mas pode também estar relacionado ao tipo de atendimento que recebem e até mesmo a fatores sociais e de gênero, afirmam.
“De modo geral, a mulher tem sintomas mais discretos de infarto, assim como os pacientes mais idosos, onde cerca de 10% não têm dor no peito. Isso pode levar tanto ao erro no diagnóstico, quanto a própria paciente acaba demorando para buscar ajuda” afirma Hélio Castello, cardiologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e um dos autores do estudo, que foi apresentado no Congresso Brasileiro de Hemodinâmica e Congresso Latinoamericano de Cardiologia Intervencionista, no Rio de Janeiro, em agosto.
A pesquisa comparou os dados de prontuários eletrônicos de pacientes com 18 anos ou mais disponíveis na plataforma TriNetX, rede de compartilhamento de dados do mundo real para estudos científicos observacionais. Os participantes incluídos no estudo tiveram um evento de infarto agudo do miocárdio com supra de ST (quando há o bloqueio repentino do fluxo sanguíneo para uma parte do músculo cardíaco). Os dados coletados eram de 19 países, sendo o Oswaldo Cruz um dos 29 centros brasileiros.
No período de análise, 509.229 pacientes tiveram um evento de infarto, sendo 187.208 mulheres e 322.021 homens. Entre os homens, 73,8% passaram por um cateterismo, número estatisticamente maior em relação ao de mulheres (70,9%). Porém, o risco de morte por infarto era 24% maior nas mulheres tanto no primeiro mês quanto até um ano após o evento em comparação aos homens. Elas eram também mais idosas e com maior prevalência de comorbidades, como hipertensão, diabetes e sobrepeso, o que pode explicar o risco elevado de morte por doença cardíaca.
“A incidência de doença cardiovascular é maior nos homens do que nas mulheres, mas o que vimos na pesquisa é que elas chegam ao hospital com uma idade mais avançada, o que talvez tenha influenciado no desfecho de óbito”, afirma Castello. “Quando a gente vê a diferença entre mulheres e homens que foram submetidos ao cateterismo, é provável que ali também haja uma diferença em relação ao diagnóstico certeiro de infarto em mulheres, que leva a um atraso na orientação para o tratamento.”
As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte em homens e mulheres por enfermidade no Brasil, segundo dados do DataSUS. No caso das mulheres, as doenças cardíacas possuem maior mortalidade do que todos os tipos de câncer.
O epidemiologista e professor titular da Faculdade de Medicina da USP, Paulo Lotufo, que não participou do estudo, aponta que pesquisas anteriores feitas no Brasil também encontraram um risco ligeiramente maior de óbito por infarto nas mulheres, embora esses dados devam ser olhados com cautela devido às diferenças regionais e de classe econômica no país, que impactam o acesso à saúde.
Contudo, ele reforça a falta de valorização dos médicos sobre os sintomas relatados por pacientes mulheres, um tipo de discriminação de gênero refletido no tipo de ensino das faculdades médicas. “A gente aprende que o paciente típico de infarto é o homem, branco, com 60 anos ou mais. Quando uma mulher chega ao hospital relatando sintomas, muitos médicos e profissionais de saúde interpretam [erroneamente] como se fosse algo menor, sintomas de menopausa, e isso acaba atrasando o atendimento”, afirma.
Este dado foi também apontado na pesquisa, que conclui que os protocolos de atendimento devem ser mais rigorosos para o diagnóstico de infarto, principalmente no atendimento de pacientes femininas.
Um estudo conduzido nos EUA e Canadá mostrou que as mulheres recebem, em geral, menos massagem cardíaca quando sofrem uma parada do que os homens. Na pesquisa, os autores apontam como possível causa a visão dos profissionais de saúde de que as mulheres sofrem menos ataques cardíacos. Pensando nessas diferenças de gênero, a Sociedade Brasileira de Cardiologia publicou, no último ano, uma diretriz para reduzir em 30% a mortalidade feminina em razão de doenças cardiovasculares.
“Precisamos conscientizar para o atendimento e prevenção do infarto. E uma das coisas que nós, médicos, e sociedades científicas batemos os pés é como você como profissional vai se preocupar com isso, quais os tipos de sinais e queixas do paciente que vão levar ao atendimento emergencial e o diagnóstico correto de infarto”, completa o cardiologista.
A marca que fica da sua experiência é de, ao menor sinal de desconforto ou dor no peito, ligar imediatamente para os seus médicos e procurar ajuda, afirma Rodrigues. “Eu não vou mais esperar para buscar ajuda, não vou mais menosprezar os meus sintomas”, finaliza.
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