Em meio aos filmes indicados ao Oscar, aqueles que aparecem em mais categorias são naturalmente os que ganham maior destaque e são mais procurados pelo grande público, enquanto aqueles que não têm uma campanha expressiva na corrida pela premiação são deixados de lado. Porém, são justamente os filmes mais “ignorados” que guardam muitas vezes tramas e conceitos extremamente interessantes, como Anatomia de uma Queda.
O longa francês gira em torno do julgamento da morte de Samuel (Samuel Theis), que é encontrado do lado de fora de sua cabana isolada após uma queda da janela do terceiro andar. As suspeitas logo recaem sob sua esposa, Sandra (Sandra Hüller), com quem mantinha um casamento conturbado.
A partir de então, a mulher passa a enfrentar um turbulento julgamento, enquanto tenta proteger ao máximo seu filho com deficiência visual, Daniel (Milo Machado Graner), a única testemunha do suposto crime.
Diferentemente do visual extravagante de Pobres Criaturas ou do drama histórico e grandioso de Oppenheimer, dois fortes concorrentes a diversas categorias do Oscar, Anatomia de uma Queda apresenta uma trama simples e até mesmo batida, com uma fotografia comum, sem grandes elementos chamativos.
O diferencial do filme, dirigido por Justine Triet, está em como ele subverte sua simplicidade, criando uma narrativa tensa e extremamente cativante, potencializada por uma filmagem inquieta e intimista.
O filme desafia o público ao quebrar o padrão criado pelo cinema hollywoodiano. Ao contrário das produções norte-americanas, o longa francês não está preocupado em deixar uma aparente divisão de três atos, e muito menos em expor todos os detalhes de sua história. O propósito desta obra é contar ao espectador um episódio da vida de seus personagens, e, sendo apenas um fragmento, não irá dar contextos ou introduções.
Sem grandes flashbacks ou diálogos expositivos, as informações são dadas de forma natural, ao decorrer da história. O público não tem nenhum tipo de privilégio. Pelo contrário, parece que é deixado de fora em alguns momentos, como quando, em sua introdução, a direção escolhe acompanhar um passeio de Daniel com seu adorável cachorro Snoop ao invés de focar nos acontecimentos na casa que precederam a morte do pai da família. Ou, ainda, quando informações cruciais para acompanhar o caso são dadas de forma tão natural pelos personagens que parecem terem sido escapadas para a audiência.
A forma de contar essa história é potencializada pela maneira que ela é filmada, usando e abusando de câmeras em primeira pessoa (ou seja, que coloca o público na visão do personagem), mas também de gravações de câmeras caseiras, em ângulos “escondidos” e até mesmo usando de recursos como reconstruções de cena profissionais e cenas de noticiários.
Mesmo que em alguns momentos pontuais esses recursos acabem sendo aleatórios, como quando usados para filmar estradas, os diferentes formatos mergulham o público naquele cenário e permitem captar expressões e sentimentos de uma maneira muito mais sutil e, principalmente, sem um viés.
Deixar o público como um mero expectador do caso e, ainda, convidá-lo a participar da história é onde o filme atinge o seu triunfo. A obra conta com o julgamento do espectador, ao ponto de ser uma peça fundamental da narrativa.
Com as informações postas, Justine Triet, por meio de sua direção e roteiro, também assinado por Arthur Harari, deixa a imaginação daquele que assiste ao filme fluir, dando informações tanto para aqueles que querem acreditar que Sandra realmente é a culpada quanto para aqueles que julgam o caso como sendo um acidente.
Embarcar nessa atividade é um exercício prazeroso, graças à narrativa construída, que consegue esse feito mesmo deixando o público tenso durante as 2 horas e 32 minutos de duração.
A imersão na história é um triunfo não só do roteiro, como das atuações. A Sandra construída por Sandra Hüller é uma bomba-relógio prestes a explodir, mas mascarada por uma postura serena e elegante de uma mulher que tem muito a temer.
O seu instinto materno de proteger seu filho, ao mesmo tempo que precisa proteger a si mesma, enquanto calcula todos seus mínimos passos para que ambas as coisas sejam possíveis e enfrenta seus dramas internos, é passado pela atuação sutil de Hüller, que merece sua indicação na categoria “Melhor Atriz” do Oscar, ainda mais quando, em raros momentos, mostra o lado explosivo da personagem.
Quem também ganha destaque é o ator-mirim Milo Machado Graner, que dá vida a um Daniel repleto de incertezas e inseguranças, que se vê completamente perdido sobre quem e no que acreditar.
Mesmo que não consiga acompanhar Sandra Hüller no peso dramático, Graner consegue transpassar para a tela os sentimentos do personagem de uma maneira muito expressiva, mesmo que, na maior parte do tempo, esteja em silêncio, apenas observando.
Em geral, todo o elenco consegue se manter consistente e coeso com o que a narrativa pedia de seus personagens, com destaque a Swann Arlaud, intérprete de Vincent, advogado de Sandra, que mesmo que, em geral, não tenha momentos de grande destaque, consegue convencer o público com seus argumentos durante as cenas de tribunal.
Aliás, o elenco é tão estrelado que até mesmo Messi, o cachorro que dá vida ao fofo Snoop, foi reconhecido, levando o prêmio “Palm Dog” no Festival de Cannes. Nada menos do que o merecido!
Lançado no Brasil em 25 de janeiro, Anatomia de uma Queda está em exibição nos cinemas. Além de vencer a Palma de Ouro no Festival de Cannes, o filme concorre a cinco categorias do Oscar 2024: Melhor Filme, Melhor Direção, para Justine Triet, Melhor Atriz, para Sandra Hüller, Melhor Roteiro Original, para Justine Triet e Arthur Harari, e Melhor Edição.
*Sob supervisão de Lello Lopes