Em ‘Dias Perfeitos’, o tempo atropela o sofrimento e a rotina se torna fonte de felicidade – Zonatti Apps

Em ‘Dias Perfeitos’, o tempo atropela o sofrimento e a rotina se torna fonte de felicidade

‘Dias Perfeitos’, dirigido por Wim Wenders, chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 29, por meio de uma parceria entre MUBI e O2 Play

[Atenção: O texto abaixo contém spoilers de Dias Perfeitos]

Hirayama levanta antes do sol, sempre ao som de uma senhora varrendo as folhas da rua próxima à janela de seu quarto. Ele veste o uniforme do trabalho, rega mudas de plantas que cultiva em outro cômodo e deixa seu pequeno apartamento sorrindo para o céu. Para o desjejum, basta uma lata de café recém-saída de uma máquina.

O personagem interpretado por Kōji Yakusho passeia por Tóquio para visitar banheiros públicos. Amparados com tecnologias que parecem distantes da realidade brasileira, os banheiros do Japão foram justamente a inspiração para o diretor Wim Wenders dar vida a Dias Perfeitos. Existe certa ironia, aliás, na profissão de Hirayama: por mais avançados que sejam os recursos que equipam os banheiros japoneses, cabe a um homem de cerca de 60 anos fazer a limpeza desses lugares todos os dias. 

Pode parecer uma rotina miserável, mas Hirayama se diverte como observador. Quase sempre a placa que indica que o banheiro está inutilizável é ignorada e o personagem acaba sendo visto de cima por aqueles que precisam ter um momento a sós com o vaso sanitário.

A vida passa diante dos olhos de Hirayama, que parece ser o único que presta atenção nos ruídos que o ser humano provoca na natureza, como um homem que dança à frente de um banheiro em um parque sem nenhuma música. 

Ruídos também confundem a solidão do protagonista. Seu encarregado, Takashi, precisa limpar os banheiros públicos para ganhar dinheiro, mas não é muito dedicado. O jovem recebe amigos no trabalho e pede até mesmo que o chefe dê uma carona para seu interesse romântico, Aya. Quando ele se depara com o acervo de fitas cassete que Hirayama mantém no carro para ouvir no rádio, elabora um plano: vender as antiguidades para levar Aya a um encontro.

Sem dizer uma palavra sequer, Hirayama convence Takashi a lhe devolver as fitas, mas cede ao dar dinheiro de seu próprio bolso para o garoto. O destino cobra logo em seguida, quando sua van quebra no meio da estrada e ele tem nas mãos apenas uma carteira vazia e uma fita rara — e valiosa — do Lou Reed.

O título dado ao longa que concorre ao Oscar de Melhor Filme Internacional pelo Japão faz referência a música homônima de Reed — “Perfect Days”. Os dias de Hirayama parecem realmente perfeitos. Ele acorda cedo, trabalha, ouve suas músicas preferidas, frequenta uma casa de banho (chamada de sento, no Japão), janta sempre no restaurante de uma galeria e termina o dia lendo um livro (autores como Aya Koda, Patricia Highsmith William Faulkner aparecem). Ou seja, os dias dele também são perfeitos em métrica.

‘Dias Perfeitos’ (Foto: Divulgação/MUBI)

Hirayama só vê necessidade no uso do relógio de pulso aos fins de semana, quando acorda um pouco mais tarde. A roupa suja é levada para a lavanderia, e ele frequenta um restaurante mais sofisticado, que é dirigido por Mama, mulher que aparenta ter uma idade próxima à dele.

Qualquer um que já experimentou dias de solidão morando sozinho, por exemplo, deve ter reparado que a própria voz só é ouvida dentro da cabeça, até que é preciso expelir algumas palavras para um entregador de delivery ou para o porteiro. Hirayama evita se colocar em conversas inconvenientes, mas dialoga com outros personagens e com o espectador muito bem. 

Com a chegada da sobrinha à sua casa, o limpador de banheiros passa a compartilhar a rotina. A menina apresenta o tio ao Spotify e menciona finalmente a Skytree, vista por Hirayama durante seu caminho para o trabalho.

Skytree, em Tóquio, no Japão (Foto: Atsushi Tomura/Getty Images)

Enquanto a sobrinha presta atenção no desenvolvimento, o tio se atém às árvores “analógicas”, que fotografa todos os dias com uma câmera Olympus. Até os sonhos de Hirayama são em preto e branco e silenciosos. No idioma original, o filme de Wenders se chama Komorebi, “uma palavra japonesa para a luz que cintila e as sombras criadas pelo balançar das folhas com o vento”.

Um episódio em que a rotina de Hirayama precisa ser quebrada e a partida da sobrinha tiram o personagem da zona de conforto. Ao buscar a filha, a irmã de Hirayama, que chega com a ajuda de um motorista particular, questiona se aquela era mesmo a vida que estava levando. Takashi também já havia levantado: “Como pode se dedicar tanto a um emprego assim?”. A conversa sugere que ele se afastou da família para viver da forma que queria e que o relacionamento com o pai sofreu uma ruptura. 

Hirayama e a sobrinha (Foto: Divulgação/MUBI)

Não é preciso se aprofundar no histórico de Hirayama para sentir o peso de seus sentimentos. História de um Casamento (2019) deu o que falar com a briga entre os personagens de Adam Driver e Scarlett Johansson. O casal que está se divorciando coloca tudo para fora por meio de vozes exaltadas. Vidas Passadas, de Celine Song, e Dias Perfeitos fazem o contrário e comovem pelo silêncio e pela expressão de sensações que, no final, não podem ser verbalizadas. Por isso, a atuação de Kōji Yakusho é aguda. 

“Na próxima vez é na próxima vez, agora é agora”, ensina Hirayama à sobrinha após dispensar um passeio sugerido por ela.

A ternura que ele demonstra perto de Mama indica que ele conserva uma paixão por ela, mas gosta de manter tudo como é, sem propôr um relacionamento. Ao vê-la tendo um momento sentimental com outro homem, porém, ele pula a refeição e vai beber às margens de um canal. O homem o encontra, esclarece que o abraço com Mama não era um gesto romântico e pergunta: “Sombras ficam mais escuras quando se sobrepõem?”

Hirayama decide que “agora é agora” e faz um teste. “Nada muda afinal”, constata ao sobrepôr sombras. Nem os inconvenientes amenizam o ritmo do tempo. Existe sofrimento na felicidade e isso é o que torna Dias Perfeitos tão acurado.

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