Em uma casa pequena em Kano, no norte da Nigéria, o artesão Ubah Musa Kasim, 37, vive com três esposas e 18 filhos. “Normas culturais e crenças pessoais” guiaram sua decisão. “Na nossa comunidade, a poligamia é mais que aceita: é encorajada”, diz. Ele conheceu cada uma das esposas em diferentes circunstâncias. “A primeira foi meu primeiro amor. A segunda foi por meio de um casamento arranjado pelos nossos pais. E a terceira também foi puramente por amor”, diz o artesão.
Na região, a prática é comum de jovens a idosos. Embora não haja uma lei nacional que legalize a poligamia na Nigéria, a prática é reconhecida em 12 estados do norte do país, de maioria muçulmana e que seguem a sharia, a lei tradicional islâmica.
No mundo todo, mais de 30 países têm a poligamia legalizada. E, em mais de 40, a prática é aceita pela população ou vista como legal para um grupo específico de pessoas, de acordo com levantamentos feitos pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e pelo instituto de pesquisa norte-americano Pew Research Center.
Um relatório publicado pelo instituto em 2020, com análise de censos e pesquisas de 130 países, mostra que a poligamia, em geral, é rara e, mesmo nos lugares em que é legalizada, é uma prática minoritária, exceto em países da África subsaariana e alguns do Golfo Pérsico.
Além disso, as permissões variam entre países. Em alguns, como Gana e Guiné, apesar de ser proibida por lei, a prática é aceita na sociedade, segundo a OCDE. Em outros, embora não faça parte do código civil, ela é aceita por leis consuetudinárias (costumes de uma sociedade tomados como lei mesmo sem aprovação de um processo legislativo) ou práticas religiosas, como na Índia e na Nigéria.
E, mesmo nos países em que a poligamia é legal, pode haver regras para regulá-la. É o caso de Burkina Fasso, onde as esposas precisam concordar legalmente com o segundo casamento do marido, e do Djibouti, onde um juiz decide se aprova ou não o segundo casamento baseado no depoimento das primeiras esposas e na investigação das condições socioeconômicas do marido, diz o Pew Research Center.
Esse arranjo familiar também está muito ligado à religião, já que as nações de maioria muçulmana são também as que aprovam a união. Mas ele não é uma exclusividade dos muçulmanos. Segundo o levantamento, em algumas nações, ele também é praticado por pessoas de religiões populares, cristãos, grupos dissidentes de mórmons e entre não religiosos, embora em menor escala.
Apesar de estar presente em vários países de maioria muçulmana, a poligamia é mais comum na África Ocidental e Central, classificada como “cinturão poligâmico” ou “poligínico”, já que o costume é que um homem tenha várias mulheres, mas não o contrário. A média de pessoas em casamentos poligâmicos na região é de 11% da população, e as maiores concentrações estão em Burkina Fasso (36%), Mali (34%) e Nigéria (28%), segundo o instituto.
A poligamia é uma questão cultural e histórica “complicada” e as razões para a sua concentração nesta região são “numerosas e interligadas”, diz a pesquisadora Stephanie Kramer, responsável pelo levantamento do Pew Research Center. Ela afirma que locais com altas taxas de poligamia tendem a ser os mesmos onde as pessoas, e especialmente os homens, vivem menos.
“Historiadores observam que a orientação islâmica sobre a poligamia foi emitida durante as guerras na Arábia e criou um sistema no qual um grande número de viúvas e órfãos poderia ser cuidado. Em locais onde os homens morrem jovens, as condições são difíceis, as mulheres normalmente não fazem parte do mercado de trabalho e as redes de segurança seculares são escassas, a poligamia ainda pode ser vista como uma boa solução para garantir que as mulheres e as crianças tenham apoio”, diz Kramer.
Em locais onde os homens morrem jovens, as condições são difíceis, as mulheres normalmente não fazem parte do mercado de trabalho e as redes de segurança seculares são escassas, a poligamia ainda pode ser vista como uma boa solução para garantir que as mulheres e as crianças tenham apoio
Na casa de Ubah, cada uma das mulheres tem um “papel”, ele diz: a primeira cozinha, a segunda cuida das finanças e mantém a organização da casa e a terceira se concentra no cuidado e educação das crianças. Um dos maiores desafios da família é o sustento das 22 pessoas que a compõem. “Nós produzimos nossa comida em terras aqui perto. Às vezes a situação é crítica, por isso investi em negócios de artesanato.”
O único julgamento que recebem, diz o artesão, é de pessoas de fora da comunidade e da religião. “A recriminação existe, às vezes, mas priorizo meus relacionamentos e a felicidade dos meus filhos”, ele diz. A reportagem tentou conversar e fotografar as esposas, mas por costumes locais, a família preferiu que apenas Ubah falasse e aparecesse nas fotos.
Na Europa, assim como na maioria dos países ocidentais, a prática é ilegal. Os estados consideram que ela viola a dignidade das mulheres, já que não há igualdade de tratamento no direito à poligamia, e as Nações Unidas recomendam que os países membros a proíbam.
A diferença de poder na relação foi observada por Anika Liversage, pesquisadora de imigração, gênero e identidade no Centro Dinamarquês de Pesquisa em Ciências Sociais, Vive, e Katharine Charsley, professora de estudos de migração na Universidade de Bristol. Elas se depararam com o assunto quando entrevistaram homens e mulheres de minorias étnicas sobre casamento e divórcio.
De acordo com Liversage, o fenômeno parece incomum entre eles. Além disso, muitas mulheres que fazem parte desse tipo de relação geralmente não estão satisfeitas ou não concordam com a situação. Embora algumas decidam pelo divórcio, muitas não estão “em posição de se opor porque são a parte mais fraca”, diz.
Quando pessoas poligâmicas decidem migrar para o continente, elas enfrentam questões legais e sociais, além de problemas jurídicos relacionados ao duplo casamento, sendo o visto o maior deles. Quando uma família pede visto, residência ou mesmo asilo em um país europeu, o marido só pode trazer uma de suas esposas, já que apenas um casamento é legalmente reconhecido. A outra (ou outras) permanece em seu país de origem.
Um problema relacionado a isso é a “poligamia relacionada à migração”, diz Liversage. Em alguns casos, homens mantêm dois casamentos em diferentes continentes sem que as esposas saibam uma da outra. Foi o que relataram Dilek, imigrante turca na Dinamarca, e Sumera, nascida no Reino Unido e com ascendência paquistanesa, em entrevista às pesquisadoras.
Segundo o Pew Research Center, é difícil fazer uma comparação temporal exata porque a sistematização de dados sobre o assunto é recente, mas há evidências de que a prática tenha diminuído nos últimos cem anos, principalmente em áreas que tiveram “muita atividade missionária cristã”, já que os missionários “frequentemente priorizam a poligamia como alvo de reforma”, diz Kramer.
“De um modo geral, a poligamia já não é incentivada pelos líderes das principais religiões, embora seja praticada por alguns muçulmanos, seitas mórmons fundamentalistas e cristãos na África. Os apoiadores muçulmanos da poligamia citam frequentemente o versículo 4:3 do Alcorão, que permite a um homem casar com até quatro mulheres, mas encoraja-o a ser monogâmico se não puder ser justo com todas elas”, diz.
Lista de países em que a poligamia é legalizada ou aceita socialmente
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Afeganistão
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Argélia
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Arábia Saudita
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Bahrein
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Bangladesh
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Benin
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Brunei
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Burkina Fasso
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Butão
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Camarões
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Chade
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Costa do Marfim
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Djibouti
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Egito
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Emirados Árabes Unidos
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Gâmbia
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Gana
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Guiné
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Guiné-Bissau
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Índia
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Indonésia
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Irã
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Iraque
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Iêmen
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Libéria
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Líbano
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Malásia
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Mali
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Marrocos
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Mauritânia
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Níger
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Nigéria
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Paquistão
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Qatar
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República Centro Africana
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Senegal
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Serra Leoa
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Síria
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Somália
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Tanzânia
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Togo
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Uganda
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