Em 30 de janeiro de 2016, a professora Vilma Lidradino, 46, notou que o olho do pai, Francisco Gomes da Rocha, 78, mudava de cor. “Ora ele ficava verde, ora azul, ora branco”, diz.
Cerca de 48 horas depois, o olho de Francisco já não tinha mais as cores que Vilma conhecia desde a infância. Depois, o órgão teve que ser removido. O motivo foi uma infecção que, segundo a Polícia Civil, atingiu 22 pessoas em um mutirão da catarata da Prefeitura de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, em 2016. Muitas ficaram parcial ou totalmente cegas.
Em setembro deste ano, o oftalmologista à frente do mutirão, Paulo Barição, foi punido pelo Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) com 30 dias de suspensão da licença de trabalho por infrações como negligência e imprudência.
Segundo a instituição, responsável por fiscalizar a atividade médica no estado, a existência de um processo ético-profissional ou de um processo criminal, por si só, não impede o exercício da medicina.
O caso estava em análise desde 2017, e, após a suspensão, a penalidade administrativa será arquivada. “Salvo se houver algum outro óbice, decorrente de outra medida administrativa ou judicial.”
Durante uma semana, a reportagem telefonou para dois números em nome do médico. As ligações caíram na caixa postal ou não foram atendidas. Também foram enviadas mensagens via WhatsApp e um email com questionamentos, mas não houve retorno até a publicação da reportagem. A defesa não foi localizada.
Hoje, Barição atende em uma clínica particular na cidade de São José dos Campos, no interior do estado. A suspensão da licença de trabalho foi encerrada na segunda (1º), mas ele manteve o afastamento por mais duas semanas.
Os procedimentos foram feitos no Hospital de Clínicas Municipal de São Bernardo por funcionários de clínica contratada pela Secretária da Saúde para prestar o serviço.
Um laudo do município, obtido pela Folha, aponta que a equipe médica encabeçada por Barição usou os mesmos materiais para operar cerca de 27 pessoas, uma após a outra, das 9h às 16h.
Uma sindicância municipal também conclui que o profissional não lavou as mãos, usou o mesmo avental e instrumentos para os pacientes sem esterilizá-los adequadamente entre um e outro –além de ter feito só uma troca do lençol cirúrgico no dia.
O médico também teria levado dois dias até relatar o problema para Secretária de Saúde de São Bernardo, que só depois da notificação passou a encaminhar pacientes a centros cirúrgicos especializados na Grande São Paulo.
No inquérito, o médico confirmou à polícia outras acusações feitas pelas auxiliares de enfermagem, como ter convidado uma namorada para abrir embalagens e não ter aplicado tampões de proteção nos olhos dos pacientes após os procedimentos.
Na época, especialistas do Hospital São Paulo, na capital, foram convocados para analisar o caso e detectaram a presença da bactéria Pseudomonas aeruginosa nos olhos dos pacientes. O microorganismo causou endoftalmite aguda, um quadro infeccioso que provoca inflamações. Uma das alternativas de tratamento mais drásticas é a remoção do globo ocular.
Ao ver a mudança na cor dos olhos do pai, Vilma reforçou a dosagem do colírio até decidir levá-lo a um pronto-socorro. Lá, reencontrou as famílias do mutirão amontoadas na sala de espera.
Um especialista recomendou a remoção do globo ocular de Francisco para prevenir que a infecção alcançasse o cérebro.
“Ele já tinha uma baixa visão de um olho e buscou a cirurgia para o outro. Aí, ele perde um e fica com o olho já comprometido. Todos entraram em pânico”, relembra Vilma. Seu pai hoje vive com familiares na Bahia.
Já Expedito Batista, 75, disse aos médicos que “preferiria morrer a ficar cego.” Mas não teve escolha. A alternativa era retirar o globo ocular e passar a usar um olho de vidro. A outra opção era um tratamento com medicamentos, o que aumentaria o risco do avanço da infecção.
Batista escolheu não passar pela retirada do globo ocular, mas hoje é cego de um dos olhos.
Duas vezes ao dia, pinga colírio no olho afetado. A cada quatro meses, recebe acompanhamento médico de uma oftalmologista. “Às vezes, meu olho fica branco, feio. Não enxergo mais nadinha”, diz.
Em nota, a Prefeitura de São Bernardo afirma que os pacientes são acompanhados por uma equipe de oftalmologistas, fisioterapeutas, psicólogos e assistentes sociais e participam de reuniões mensais para a manutenção de óculos e próteses oculares.
Na Justiça, as vítimas processaram o médico, duas auxiliares de enfermagem e o município de São Bernardo do Campo por ações como erro médico e lesão corporal. Segundo a defesa das vítimas, a ação criminal por lesão corporal ainda corre na Justiça.
Em 2016, o Ministério Público pediu o arquivamento de uma ação por lesão corporal grave contra Barição pela morte do paciente Pellegrino Fischer Riatto, ocorrida um mês após o mutirão. O tratamento de Riatto envolveu uma cirurgia e antibióticos para conter a inflamação.
Os promotores entenderam que a morte de Pellegrino, causada por quadros anteriores de saúde, não teve relação com a cirurgia de catarata. O documento, porém, reforça que “não existem dúvidas de que a vítima foi acometida por endoftalmite em razão da completa ausência de esterilização de instrumentos e outras assepsias.”
Um ano após a remoção do globo ocular, o paciente Anísio Augusto, 70, também morreu por complicações pós-cirúrgicas, de acordo com familiares. Anísio teria desenvolvido um quadro de depressão após ter um dos olhos retirado.