O Brasil deve começar a produzir e comercializar carne cultivada em laboratório em 2024. A informação é de Raquel Casseli, diretora de engajamento corporativo do The Good Food Institute (GFI), organização sem fins lucrativos que financia projetos e pesquisas no segmento e envolve empreendedores que buscam a regulamentação desse mercado no país.
Atualmente, há 57 universidades e centros de pesquisa com projetos sobre proteínas alternativas, tanto para plant based (produzidas a partir de vegetais) quanto de carne cultivada. “O processo regulatório desse mercado no Brasil vai acompanhar o resto do mundo”, afirma Casseli.
Hoje, Cingapura é o único país a permitir a venda de produtos de proteína alternativa. No dia 17 de novembro, o FDA (agência americana reguladora de medicamentos e alimentos) aprovou, pela primeira vez, a comercialização de carne criada em laboratório. A licença vale só para a carne de frango da food tech californiana Upside Foods, que poderá começar a vender o produto assim que suas fábricas passarem por inspeção do departamento de agricultura americano.
Na União Europeia, a expectativa é que até o final deste ano se iniciem os preocessos para aprovação da carne cultivada, com os primeiros produtos sendo comercializados em 2024, assim como no Brasil.
A carne cultivada é um método de produção de alimentos de origem animal por meio da extração de células-tronco. Elas são processadas em biorreatores que proporcionam condições necessárias para proliferação e segurança biológica contra contaminações até o produto final, que é extraído por meio de impressão 3D.
Atualmente, grande parte dos projetos chegou ao estágio de massa proteica, espécie de carne moída que é utilizada para produzir empanados e derivados. O objetivo das principais iniciativas em desenvolvimento é, no entanto, conseguir reproduzir a carne em cortes específicos, como filés. Para isso, é necessário contar com materiais que sirvam como suporte para a impressão 3D, permitindo que as células encontrem condições ideais para o desenvolvimento das características do corte de carne desejado.
Pioneira nesse estudo, Aline Bruna da Silva, docente do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, é responsável pelo primeiro protótipo de carne de frango cultivada em laboratório utilizando um nanomaterial à base de celulose comestível que serve de estrutura para as células se desenvolverem e ganharem forma tridimensional.
Financiada com recursos do GFI Brasil, a pesquisa busca justamente desenvolver a tecnologia necessária para viabilizar os cortes mais específicos de carne. “Apesar de as empresas e startups serem motores do desenvolvimento de mercado, as universidades podem proporcionar soluções para problemas comuns em projetos de carne cultivada, principalmente na parte tecnológica”, afirma.
De olho nesse novo mercado, grandes empresas do setor de alimentos já começaram a se movimentar. Em 2021, a JBS adquiriu a BioTech Foods, especializada em cultivo de carne, destinando US$ 100 milhões (R$ 537 milhões) para o desenvolvimento de produtos feitos por meio desse processo. A BRF também anunciou um investimento de US$ 2,5 milhões (R$ 13,4 milhões) em uma startup israelense que atua no mercado.
As startups dominam a aplicação da tecnologia nesse mercado. Criada em 2017 por Marcelo Szpilman, biólogo marinho e fundador do Aquário Marinho do Rio, a Sustineri Piscis é uma delas. A empresa já chegou ao protótipo da massa proteica para empanados e tem como objetivo atingir o estágio do filé de peixe.
O foco na carne de pescado se dá pelas condições celulares que esses animais proporcionam para o desenvolvimento da tecnologia. “A célula dos peixes tem uma série de vantagens quando comparada à de mamíferos e aves. Uma delas é o fator de crescimento, que faz com que as células tenham muito mais gerações”, explica.
Ele aposta no potencial das proteínas alternativas para um futuro sustentável na produção de alimentos. “Efetivamente, a carne cultivada tem um papel importante na questão da sustentabilidade, sobretudo na redução de geração de resíduos como CO2 e metano, que são grandes poluentes”, diz.
O impacto ambiental que o consumo de alimentos de origem animal causa é um dos fatores que justifica a busca por alternativas. De acordo com uma pesquisa da World Resources Institute, para alimentar a população mundial, projetada em 9 bilhões de pessoas até 2050, a produção de proteína animal precisará aumentar 60%. Anualmente, a pecuária é responsável pela geração de 7,1 gigatoneladas de CO2, o que representa 14,5% de todas as emissões de gases de efeito estufa.
Segundo estudos da Universidade de Oxford com a Universidade de Amsterdã, a carne cultivada tem potencial de suprir proteína animal com emissão de gases do efeito estufa 96% menores. Os pesquisadores apontam ainda que a indústria desse tipo de carne pode funcionar com 45% a menos de gasto de energia e reduções entre 82% a 96% no uso de água.
A sustentabilidade econômica do modelo, no entanto, ainda é um desafio. O cultivo do primeiro bife de hambúrguer em laboratório pelo farmacologista Mark Post, por exemplo, custou US$ 300 mil (R$ 1,88 milhão) ao longo de dois anos, tendo sido finalizado em 2013. Em 2019, o custo por hambúrguer caiu para US$ 8,80 (R$ 47,20), e a projeção é que, com a regulamentação em vários países, ele seja cada vez menor, tornando os produtos mais acessíveis. Mas tudo isso ainda é uma aposta e depende diretamente da aceitação do produto no mercado.
“As empresas ainda têm um grande trabalho pela frente para explicar o que é essa tecnologia, como é produzida a proteína e fornecer informações para que o consumidor se sinta confortável em comprá-lo”, afirma Raquel Casseli, do GFI Brasil. Apesar disso, Szpilman é otimista. “Não tenho dúvida de que no futuro vamos ter picanha, peixe e frango produzidos em laboratório”, diz.
Esta reportagem foi produzida a partir de aulas e conteúdos debatidos no curso Nova Economia, promovido pelo FolhaLab+ iFood