Com os R$ 150 que sobram após pagar as contas, Brenda Ketlin, 24, consegue comprar pão, arroz e feijão. Essa se tornou a base da alimentação dela e de seu filho, Taylon Luca Gonçalves, 4, que moram em um barraco de madeira na favela Morumbizinho I, na zona leste de São Paulo.
A jovem nunca teve um emprego formal, e, depois do nascimento do filho, ficou ainda mais difícil encontrar trabalho.
A avó do menino, Júnia Lúcia Gonçalves Pereira, 53, cuida de Taylon e outros cinco netos, todos na primeira infância, com idades entre 0 e 6 anos. A matriarca da família teve nove filhos, dos quais quatro são mães que também estão desempregadas. Assim como Júnia, elas dependem do valor pago pelo Bolsa Família, de R$ 650, além de eventuais bicos.
“Arroz e feijão é o que meus netinhos mais comem, eu acho um absurdo, tinha que ter um legume, uma fruta. É muito difícil ver isso, não gosto nem de falar isso, meu coração fica muito triste”, diz a avó. “A gente faz o possível para comer todo dia, mas acontece de ficar um dia ou outro sem nada. Só Deus sabe como é.”
A realidade da família de Júnia é a mesma de muitos outros brasileiros. Segundo estudo do NCPI (Núcleo Ciência Pela Infância), até 2021, a comida faltava em 1 de cada 3 lares brasileiros, totalizando 2,3 milhões de crianças de 0 a 6 anos em domicílios sem renda suficiente para suprir necessidades básicas de alimentos.
O número corresponde a 11% da população da faixa etária, percentual parecido com o de duas décadas atrás. Em 2001, eram 13,5% os que passavam necessidades.
O estudo aponta que a falta de alimentos em quantidade e qualidade adequada durante a primeira infância tem consequências para a vida, como deficiências no desenvolvimento emocional, cognitivo e de linguagem. Tais consequências afetam o desenvolvimento socioeconômico do país, segundo especialistas.
Uma revisão de estudos feita por pesquisadores americanos para o relatório “Food Insecurity in Early Childhood” (Insegurança alimentar na primeira infância, em português), desenvolvido pelo Center for Study of Social Policy, mostra que a insegurança alimentar tem impacto na performance escolar da criança e cria dificuldade de foco e aprendizagem, o que prejudica o desenvolvimento acadêmico.
Para Naercio Menezes Filho, professor titular de economia do Insper e membro do NCPI, a falta do pleno desenvolvimento das capacidades na infância causa perda de, em média, 20% da renda individual na fase adulta.
Isso acontece pois, segundo ele, são pessoas que costumam estar fora do mercado formal de trabalho e podem ter problemas de aprendizado, ensino básico incompleto e dificuldade para chegar ao ensino superior.
“Isso alimenta o ciclo vicioso da pobreza. Esses jovens ficam dependentes do Bolsa Família, muitas vezes têm filhos durante a adolescência e essas crianças também não têm oportunidades. O crescimento do país depende da qualificação da população”, diz ele.
O professor defende uma solução multidisciplinar, com políticas públicas intersetoriais que contemplem as áreas de educação, atendimento médico, saneamento básico e transferência de renda.
Soraya Santos Vieira, 37, é mãe de oito filhos de 2 a 19 anos. Sem trabalho formal, também conta com o Bolsa Família para colocar comida na mesa todos os dias.
“Arroz, feijão e macarrão dá para comprar. É apertado, mas dá. Quando eles pedem alguma outra coisa eu converso e explico que não tem de onde tirar, tem que esperar”, diz ela.
Estudo do Ministério da Saúde realizado em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal revela que o programa Bolsa Família reduz em 91,7% o percentual de crianças na primeira infância que vivem em condição de pobreza ou extrema pobreza.
Pessoas pretas ou pardas correspondem a 73% dos beneficiários do programa, que hoje conta com mais de 40 milhões de pessoas.
Em março de 2023, foi criado o Benefício da Primeira Infância, um pagamento associado ao Bolsa Família que garante a transferência de R$ 150 por criança às famílias até 6 anos de idade. Desde então, o benefício tem chegado a 9,3 milhões de crianças no país todos os meses.
A falta de alimentos em quantidade adequada também tem cor: 58,3% dos domicílios de pessoas pretas com crianças menores de 5 anos vivem com insegurança alimentar, segundo o estudo do NCPI. O percentual é de 51,2% nos lares de pessoas pardas e 40% nas casas de pessoas brancas. Apenas 1 em cada 4 crianças de 0 a 3 anos em situação de extrema pobreza está matriculada em creche.
Linus Fascina, gerente médico do departamento de pediatria do Hospital Israelita Albert Einstein, afirma que os primeiros mil dias de vida de um ser humano são cruciais para o seu desenvolvimento.
A nutrição é fator fundamental para o crescimento da criança, diz ele. A alimentação inadequada durante os primeiros anos de vida pode levar à desnutrição, que é associada ao retardo de crescimento, além de causar deficiências no sistema imunológico. A soma desses fatores aumenta a vulnerabilidade para doenças infecciosas e reduz a capacidade de recuperação, afirma.
“A falta de nutrientes interfere no desenvolvimento do cérebro, resultando em menor volume cerebral e menores conexões. A percepção que esse indivíduo tem de si e do ambiente, a capacidade cognitiva afetará o desempenho escolar e, a longo prazo, a vida adulta”, afirma o médico.
A série Primeira Infância é uma parceria da Folha com a ONG Todos Pela Educação e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal