Não é só com dietas restritivas, exercícios em excesso ou purgação que se faz um transtorno alimentar. Comportamentos obsessivos, que causam a impressão de controle, podem estar associados a quadros de bulimia e anorexia. As “regras” incentivadas por leigos e profissionais para manter ou perder peso podem se expressar de inúmeras formas em indivíduos com transtornos alimentares ou predispostos a desenvolvê-los, diz a nutricionista Sophie Deram ao blog Não Tem Cabimento.
A ansiedade gerada por instruções como pesar alimentos, contar calorias ou controlar o peso subindo numa balança semanalmente pode acentuar pequenas insatisfações até que se componha uma teia complexa de comportamentos nocivos à saúde.
“Há muitos casos de TOC (transtorno obsessivo compulsivo) associados a quadros de transtornos alimentares. Não se sabe, no entanto, o que vem primeiro”, diz a especialista, que é coordenadora do projeto de genética do Ambulatório de Transtornos Alimentares no laboratório de Neurociências do IPq-FMUSP (Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Assim, hábitos que podem parecer banais, como assistir em looping a vídeos de pessoas comendo, mexer na comida sem realmente ingeri-la, se sentir triste por comer mais do que outras pessoas na mesma mesa, e estabelecer acordos internos para se permitir consumir algum alimento (como o tamanho máximo de um recipiente, por exemplo) podem estar ligados a doenças como a bulimia e a anorexia.
De acordo com Sophie, tais comportamentos têm a ver com crenças pessoais e transformam regras próprias em obstáculos entre o indivíduo e a comida. Há casos em que a pessoa evita até mesmo a ingestão de água por acreditar que o líquido, vital para o funcionamento do organismo, seja responsável por engordar. “É preciso um trabalho multidisciplinar, em que o acompanhamento psicológico auxilie a desfazer as ideias que se transformam nessas regrinhas”, diz.
Esses acordos internos podem ser incentivados pelos próprios profissionais de saúde, que na intenção de instruir para o emagrecimento, podem reforçar desconfortos e despertar conflitos ao redor dos hábitos alimentares.
“A relação com o corpo deveria ser tão tranquila como respirar, ir ao banheiro e dormir, pois confiamos que o corpo sabe o que está fazendo. Mas a nossa sociedade colocou a nutrição como uma ciência quase exata, ignorando que por trás dela há indústrias de suplementos, dietas e cirurgias”, diz Sophie. Assim, pessoas com transtornos alimentares podem perder a habilidade de perceber as sensações do corpo (algo chamado introrecepção), se desconectando da fome.
“É importante que essa relação seja restabelecida, mas não é fácil: quando uma pessoa com transtorno alimentar vai se reabilitando e volta a perceber suas sensações, às vezes a fome está gritando. E isso assusta”, explica.
Não é tão simples desatar esses nós porque, ainda que nem todas as pessoas que têm uma má relação com a comida sofram de transtornos alimentares, comer de forma disfuncional é algo cada vez mais comum.
A mudança no ambiente alimentar desde os anos 1960, com a introdução massiva de alimentos industrializados e ultraprocessados, ocasiona um aumento no consumo de açúcar, gordura e sal na sociedade. “Esse consumo altera o funcionamento cerebral. O centro da recompensa, estimulado por essas substâncias altamente processadas e de fácil absorção, vai liberar mais dopamina [neurotransmissor conhecido como ‘hormônio da felicidade’]”, diz a psiquiatra Ligia Florio, especialista em em transtornos alimentares com foco em compulsão alimentar e obesidade, doutoranda do IPq-FMUSP. Em consequência do aumento da obesidade, inclusive entre crianças e adolescentes, há uma demanda de novos medicamentos, como os anorexígenos.
“Remédios desenvolvidos na época da guerra, para que os soldados não dormissem ou sentissem fome, passam a ser usados para a perda de peso. Mas o uso de drogas para emagrecer não é estável: ao fim do consumo, as pessoas recuperam o peso”, diz Florio.
Mas Sophie enfatiza: desenvolver uma boa relação com a comida é primordial. Para ela, o Índice de Massa Corporal (IMC), por exemplo, é um número que pode ser interessante na avaliação do paciente, mas não deve ser o único parâmetro utilizado pelos profissionais para avaliar sua saúde.
“Gordura, colesterol, peso na balança… São apenas números. De repente vemos pessoas que comem só pelos macronutrientes, transtormando uma refeição de carne e arroz em uma contabilização de carboidratos e proteínas. Mas a melhora na saúde é apenas uma consequência de ter uma boa relação com a comida”, diz a especialista.
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