Ele tem mais de 1 milhão de seguidores no Instagram, rede social que utiliza para falar, dentre outras coisas, que crianças não deveriam estar ali.
Pediatra e ativista pela infância, como se autodefine, Daniel Becker tem se tornado uma das principais vozes quando o assunto é o bem-estar das crianças.
Ele defende cuidados simples, como a interação com elas, brincadeiras ao ar livre, acolhimento e criação de intimidade com os filhos.
Parece algo básico, mas a vida agitada e especialmente o uso excessivo do celular estão distanciando os adultos das crianças, causando uma série de efeitos, alerta Becker.
Para o pediatra, o celular se interpõe entre o olhar dos cuidadores e das crianças, tornando-se uma barreira para a criação de vínculo, afeto e intimidade.
Isso gera o que ele chama de “parentalidade distraída”, o que pode ter até mesmo consequências catastróficas.
Estamos tão apegados a esse aparelho, que, segundo o médico, que é formado pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e mestre em saúde pública, até a televisão é melhor que o celular.
Ao menos você tem maior poder de escolha sobre o que assistir na TV e não fica submetido aos algoritmos, diz Becker, de seu consultório no Rio de Janeiro, nesta entrevista realizada por videochamada.
Mas, embora o celular seja o meio de propagação de conteúdos “viciantes” e comparáveis ao “lixo” que está nas redes sociais, o pediatra diz que dá para estabelecer uma relação minimamente saudável para crianças e adolescentes com ele.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Este é um ano de eleições municipais, mas o debate entre os candidatos passa longe de temas voltados para a infância. O que um bom plano de governo voltado à infância deveria ter, na sua opinião?
Proteger a criança e promover a saúde e a qualidade de vida dela significa cuidar das famílias também, especialmente das mães. Existem muitas políticas que são municipais e que estão fora do radar, como a cobertura de creches.
O Brasil tem a meta de ter 50% de cobertura de creche [ou seja, ter creche para ao menos metade das crianças de zero a três anos], mas existem municípios onde não há praticamente nenhuma creche. E, sem creche, você tem uma mãe completamente assoberbada que não tem onde deixar a criança, ou vai deixar sob cuidados precários.
No plano da saúde, é importante o investimento na saúde da família, que envolve, dentre outras coisas, a vacinação, algo que depende muito do município. O apoio à amamentação, crucial para o bebê e para a mãe, também precisa ser bem desenvolvido.
Todo médico de Atenção Básica e todo médico de família deveria ser treinado para dar apoio à amamentação. Temos uma política aqui no Brasil maravilhosa que são os bancos de leite, mas o município sequer divulga isso, muitas vezes.
Outra atividade muito bacana são os grupos de gestantes e os grupos de puérperas, que podem ser formados por meio da Atenção Básica da saúde. Os programas municipais de infância estão trabalhando algo também importantíssimo, que são os programas de educação parental.
Na maioria das vezes, as famílias, especialmente as mais pobres, não têm noção da importância, por exemplo, do estímulo ao desenvolvimento, do carinho e do afeto na criação dos filhos.
Isso inclui orientações sobre uma boa alimentação também. As pessoas não sabem que miojo não faz mal, que dar salgadinho e refrigerante para o bebê faz mal. Hoje, 80% das crianças acima de oito meses já provaram coisas açucaradas, inclusive refrigerantes.
Tem outra política que considero especialmente importante e que é muito benéfica para toda a sociedade: a cidade amiga da criança.
Ou seja, manter as praças bem cuidadas, acessíveis, iluminadas, seguras, com bons brinquedos, com sombra, arborizar as calçadas. A brincadeira no espaço público é o melhor benefício possível para uma criança: vai beneficiar saúde física, mental, espiritual, emocional, melhora a imunidade, reduz problemas de comportamento, melhora o apetite.
Além disso, ativa o turismo e o comércio, aumenta a arrecadação da prefeitura.
O senhor fala muito da importância de brincar em meio à natureza, no parque, na areia. Mas esses espaços, os parques, geralmente não estão nas periferias. Ou seja, as crianças da periferia, mais uma vez, são privadas dessa convivência.
Isso se chama racismo ambiental, injustiça ambiental ou injustiça recreativa também.
O uso do celular por crianças e adolescentes é um tema, mas queria perguntar antes sobre o uso pelos adultos. O senhor usa um nome para as consequências disso, “parentalidade distraída”. Do que se trata?
O celular tem um apelo viciante muito mais profundo do que a televisão, e o adulto se perde nas redes sociais, deixando de olhar para a criança.
O celular acaba se interpondo entre o olhar do pai e do filho. O olhar é fundamental para a criança, porque é nesse olhar que ela vai encontrar o afeto, o carinho e o vínculo.
É na interação com a gente, por exemplo, que a linguagem se desenvolve. Não existe desenvolvimento da linguagem olhando para tela ou vídeo.
A precarização desse vínculo gera um empobrecimento de relação, e isso vai afetar a autoestima da criança. Ela vai perceber que aquele negócio na mão do pai é mais importante do que ela. Não é apenas o desenvolvimento em geral que está em risco. Acidentes estão acontecendo.
Canso de ouvir que filho não vem com manual. Mas o manual está ali dentro dos olhos dos seus filhos. Olhe para eles. Ninguém precisa passar duas horas brincando com a criança no chão para desenvolver intimidade. São ações simples, é o convívio simples, é acordar a criança, dar o café da manhã, dar um banho, contar uma história, jantar junto, brincar um pouquinho. Contar histórias na hora de dormir, que é um gesto simples, mas marca a criança pelo resto da vida dela de forma positiva.
Esse convívio gera uma coisa chamada intimidade, que é a chave da educação. Quem consegue intimidade com seus filhos não precisa apelar nem para a permissividade excessiva, nem para o castigo, para a palmada, para coisas piores. Castigo e palmada não fazem ninguém aprender nada.
Muitos educadores dizem que birra não existe. O que o senhor acha?
A gente chama de birra, mas acho que tem nomes mais apropriados. Seria uma crise de irritabilidade e está essencialmente ligada ao momento de desenvolvimento daquela criança.
Com cerca de um ano e meio, ela começa a dominar todas as capacidades de um ser adulto para a interação social. Começa a falar, a entender, a se movimentar, a alcançar as coisas, a desenvolver autonomia. E é por isso que quer fazer só o que ela quer, não vai aceitar ordens.
Qualquer coisa que venha contrariar seus desejos vai gerar uma briga e ela vai ficar irritada, porque não tem noção de controle de impulso. Se ficar chateada, aquela chateação vai dominá-la completamente. Ela vai chorar, se jogar no chão, vai bater.
As pessoas ficam ofendidas quando isso acontece, dizem “meu filho me bateu”. Isso é um absurdo. São crianças que estão aprendendo as noções de sociabilidade e que não têm a menor noção das relações sociais. Não sabem o que significa um tapa ou se jogar no chão. Isso é adrenalina que está circulando ali dentro, e a criança precisa de movimento. Isso é parte do desenvolvimento necessário e natural de toda criança.
Até que idade isso é normal?
Até os quatro anos. Se passar muito disso, já é preciso ter um olhar mais cuidadoso. Com quatro anos, existe um salto de desenvolvimento em que a criança fica com mais inteligência, mais discernimento, mais capaz de compreender as regras sociais, ela fica com uma certa malícia, começa a entender piadinhas, ironias e brincadeiras.
É um momento delicioso de desenvolvimento. Os quatro anos são a minha idade preferida, porque a criança brinca contigo, sorri, entende a maldade, vira uma palhaçada, entende a piada.
A gente precisa entender que isso é parte do desenvolvimento e ter um pouco de paciência. Isso passa. Brigar, castigar, dar tapas nessa hora vai piorar e ainda gerar consequências muito negativas no futuro.
O momento da birra pode ser uma oportunidade educativa para a criança, porque é uma explosão emocional. Não adianta você fazer discurso nesse momento. É ridículo dizer para a criança que ela deve ir para o cantinho do pensamento, isso não funciona. Você acha que ela vai pensar sobre o que fez?
Nessa hora, é preciso acolher, acalmar, respirar junto. É o que a gente chama de corregulação. No meio da birra, o que a criança precisa é de um abraço, de ser contida. Respire junto com ela.
Uma coisa legal é ensinar a respiração do “cheira a florzinha, assopra a velinha” antes da crise. Na hora da crise, você faz com ela. Essa respiração é mágica, porque respirar fundo e expirar soprando tem um efeito calmante no cérebro. É um gesto que traz alívio.
Você pode usar esse momento para mostrar o que sente. Acolha os sentimentos, dê legitimidade a ela. Todo sentimento é legítimo. O que a gente não deve legitimar é a reação inadequada a um sentimento. Qualquer emoção é válida, e ninguém pode deixar de sentir uma emoção porque quer.
Acolha a emoção, diga: “Olha, você pode estar com raiva, eu também fico com raiva. Mas você não pode bater em mim. Aqui em casa, a gente não bate em ninguém”.
A Assembleia Legislativa de São Paulo está debatendo um projeto de lei para proibir o uso de celular nas escolas. Como estabelecer uma relação minimamente saudável dos jovens com o celular?
A tecnologia ocupa uma parte da nossa vida, e as crianças não vão ficar fora disso.
O problema é: a partir de que idade a criança tem que ter contato com uma tela digital? A partir de que idade ela tem que ter um celular ou estar em uma rede social? Essa é uma discussão muito relevante.
Existem tecnologias que são apropriadas e outras não, porque vão trazer riscos altíssimos para o desenvolvimento. A gente sabe que qualquer tela vai trazer prejuízos para uma criança pequena. Por isso, especialistas insistem que até um ano e meio, dois anos, a criança não tenha acesso à tela. Isso não quer dizer que, se a mãe estiver amamentando um bebê de seis meses enquanto assiste à novela, isso vai ser um problema. Não é isso.
Agora, uma mãe não deve ficar no celular enquanto amamenta, por exemplo, porque as redes sociais têm um algoritmo que determina o que vamos assistir, que geralmente é lixo viciante. Pode acontecer da criança se distrair também e ficar assistindo. Às vezes, acontece até de a criança morder o peito da mãe sem querer, devido a um estímulo vindo do celular.
Depois dos 2 anos, até uns 5 anos, você pode permitir o uso de tela, de preferência da televisão, porque você escolhe o que vai passar ali e, de preferência, com interação com um adulto. Até os cinco anos, você pode estabelecer uma hora e meia por dia de televisão.
Depois, dos cinco aos dez anos, dá para flexibilizar um pouco. Mas ter um telefone celular, com acesso à internet, aos oito anos, é escandaloso. É um erro muito absurdo e vai custar muito caro para a família depois. Quanto mais cedo a criança tiver o celular, mais nocividade ela vai sofrer. Maior tendência à depressão, ansiedade, pânico e até problemas graves de vício.
Uma criança com oito anos não tem discernimento para distinguir um golpista de um amigo, um pedófilo de um professor. O crime mudou para a internet, e ele não está só nas redes sociais, está no WhatsApp também.
Por isso, a recomendação é não entregar um celular nas mãos da criança antes do fim do ensino fundamental. E não deixar que elas entrem em redes sociais antes dos 15, 16 anos. As redes sociais são um mundo de horror que se abre para a criança.
A ansiedade no Brasil, de 2013 para cá, aumentou 1500% na adolescência, segundo pesquisa do Datafolha feita com dados da atenção psicossocial do SUS (Sistema Único de Saúde).
É escandaloso. Superou o atendimento de adultos em número absolutos. E o que aconteceu de 2013 para cá? Teve a pandemia, mas ali só foi registrada uma leve oscilação. O problema começou em 2010, 2012, quando todo mundo começa a ter celular, redes sociais.
A escola é um lugar absolutamente estratégico hoje em dia, porque é regulamentada. É onde ainda é possível aplicar regras. As famílias não conseguem aplicar regras, porque ninguém consegue vencer a Meta [dona do Instagram, Facebook e WhatsApp] ou a ByteDance [dona do TikTok]. Quem manda nos seus filhos hoje, se eles têm celular, são essas empresas.
Por isso, tem que proibir o uso de celular não só na sala de aula, como também no recreio, que é o último reduto do brincar hoje. Brincar é a coisa mais importante da infância. Uma infância que não brinca gera adultos estúpidos, infelizes, deprimidos, violentos e intolerantes.
O recreio é precioso e não pode ser com celular. A escola tem que ser uma pausa dessa invasão do digital ao mundo real. É celular zero, da entrada até a saída.
Nessa era de cyberbullying, quais sinais a família precisa ficar atenta para saber se seu filho está sofrendo esse tipo de crime? E, por outro lado, o que fazer quando quem pratica o bullying é o seu filho?
A criança que sofre bullying não conta para ninguém, porque a humilhação é tão terrível. Ela se sente tão mal que tem vergonha do que ela está passando, de ser quem ela é, de ser tão fraca, de não conseguir reagir. Ela não vai contar para os pais, porque tem medo que reajam mal.
É preciso prestar atenção em quem são as vítimas preferenciais. Os tímidos, os mais nerds, os diferentões, o gorducho ou o magrelo, o cara que usa óculos fundo de garrafa, ou o que é atípico, o que não joga bola bem, o negro em uma escola branca.
Os mais novos da turma são vítimas preferenciais também, porque eles têm menos malícia e menos inteligência social para enfrentar essa malícia.
[Fique atento] Se o seu filho começa a dar qualquer sinal de que não está legal, seja porque ele chega da escola triste, inventa doença, faz cara triste para ir para a escola, está desanimado na hora de sair.
Ou a escola está reportando que ele não quis participar de alguma aula de educação física, que no recreio ele está sozinho. A escola geralmente não informa isso, mas esse é um sinal clássico.
Ele também deixa de conversar com a família, fica mais arredio, dentro do quarto jogando e deixando de sair com os amigos de fora da escola. São sinais claros de que algo não está bem, e você tem de conversar com ele de forma sutil.
Vá fazer um programa que ele goste, chame para passear. Tem vários filmes hoje sobre bullying, assista um com ele, converse depois sobre isso. São algumas das formas de conseguir chegar nessa criança.
Bullying é hoje um crime tipificado por lei, com consequências para quem pratica, para os responsáveis pela criança e para a escola. A escola que não toma providências pode ser responsabilizada judicialmente.
Existem muitas estratégias hoje em dia. Tem que ter educador preparado, fazer capacitação para enfrentamento de bullying. Sempre recomendo devolver isso para a turma em que o bullying ocorreu, questionando como resolver isso.
Aí, eles pesquisam, fazem debates, fazem roda de conversa, acolhem esses dois lados. Porque o agressor muitas vezes tem que ser acolhido também, ele está sofrendo em casa, muitas vezes.
A escola tem que ter política de prevenção de bullying, que começa com educação antirracista, inclusiva, cultura africana. Tem que ter a educação ambiental, socioemocional, tem que ter espaços de acolhimento para quem está sofrendo, tem que identificar meninos e meninas isolados, tem que ter tutores para essas crianças, um espaço de privacidade onde a criança possa contar para alguém o que está acontecendo com ela.
Em relação a quem está praticando bullying, essa criança está geralmente sofrendo também, mas é óbvio que aí a conversa é um pouco mais rigorosa. Também é importante a família falar de respeito ao outro, de privacidade, de educação, de etiqueta na internet.
Os sinais de um agressor são crianças mais raivosas, mais agressivas. Mas, geralmente, os pais sabem que a criança está praticando bullying quando a queixa chega na família,
Mas é importante dizer que ambos os lados do bullying têm trauma para o futuro.
Vítimas e praticantes de bullying, quando essas vivências não são processadas de forma adequada, são crianças que, no futuro, terão mais problemas de relacionamento, no trabalho, terão mais tendência a adoecimento físico, mental, ao uso de remédios e de drogas também.
Este texto foi publicado originalmente aqui.