Talvez o mais aterrador em “Adú” seja seu desfecho. Pouco depois da sequência final, é projetada sobre a tela a informação de que, só em 2018, setenta milhões de pessoas foram obrigadas a deixar suas casas “em busca de um mundo melhor”, sendo que metade desse contingente se compusera de crianças. A ideia de mundo melhor é, sem dúvida, perigosamente subjetiva — o mundo melhor de uns é o inferno inescapável de muitos —, mas alcança-se a intenção do espanhol Salvador Calvo, diretor do filme, quanto a ressaltar o efeito exponencialmente danoso que as políticas anti-imigração de nações europeias exercem sobre cidadãos de países africanos, mormente os mais vulneráveis. Incapazes de vencer a miséria, nascida em grande parte graças à corrupção e à pouca habilidade no trato com a coisa pública, esses países combatem um mal provocando outro mal, de resolução infinitamente mais complexa. A escalada de cerceamento de direitos, perseguição e violência contra pessoas que abandonam sua terra natal e tentam se integrar a um outro universo, mesmo as que o fazem integralmente respaldadas pela lei, é um fenômeno de proporções cada vez mais assustadoras, que se firma como praxe num tempo em que a falta de preparo para se lidar com dificuldades de pessoas que não têm nada a oferecer tornou-se capital político. Imigrantes, ilegais ou não, servem para fazer o trabalho aborrecido e penoso que brancos que frequentaram a universidade podem se dar o luxo de revisar. Ponto.
Lançada em 2020, a narrativa de Calvo se presta a verdadeira saga ao contar as dificuldades de um garoto camaronês de seis anos em ser incorporado, primeiro no seio de sua própria família. A vida marginal que o espera junto com a irmã, Alika, é apenas um reflexo da tragédia familiar ancorada em pobreza severa, falta de perspectivas e desprezo do poder público. As performances de Moustapha Oumarou e Zayiddiya Dissou — que só aparece quando o filme já está em plena marcha, mas proporciona momentos igualmente luminosos — conduzem um bom bocado de “Adú”, que logo revela o que pretende, chamar a atenção, por meio de um enredo tricêntrico, para uma chaga aberta que sangra em torno da Europa, explorada pela imprensa, mas ineficaz quanto a despertar a comoção, a empatia e, o principal, o desejo de tomar para um sem fim de gente, povos daquele continente em especial.
Em paralelo à angústia que toma a vida dessa criança, começam a orbitar em “Adú” a presença do ativista ambiental cuja dedicação em salvar elefantes do extermínio é diretamente proporcional ao descaso com a própria filha e o grupo de policiais algo cínicos que fiscalizam o trânsito e o tráfego de pedestres nas imediações da cerca de Melilla, divisa da Espanha com o Marrocos. Gonzalo, o pai amargurado que encontra algum alento na vida selvagem interpretado pelo sempre notável Luis Tosar, torna a se deparar com o fantasma da paternidade renegada no momento em que a filha Sandra, de Anna Castillo, decide procurá-lo e passa a viver com ele por um período. A pouco e pouco, por mais que se discorde dos rumos que Gonzalo decidiu para sua vida, entende-se sua a tibieza de sua postura. Sandra, uma ex-viciada em drogas que enfrenta episódios de recaída, se nega a receber ajuda, e a convivência dos dois não tarda a se revelar um tormento, tanto para ele como para a própria personagem de Castillo. Pouco antes, seu pai havia sido alvo de hostilidades por parte dos moradores da área fiscalizada por ele nos Camarões, país a oeste da África Central onde também vivem Adú e Alika. O empenho de Gonzalo em combater a matança de paquidermes nas reservas legalmente instituídas justamente para sua preservação é o que o condena, momento em que o roteiro de Alejandro Hernández faz o filme de Calvo atingir o ápice. Os tropos da cacotopia, protagonizada por um anti-herói que toma para si um propósito nobre e passa a ser refutado por essa mesma razão é muito bem elaborado pelo diretor, que deposita na figura de Tosar, acertadamente, sua esperança de dar alguma relevância ao longa, sem dúvida bem-intencionado, mas a todo instante prestes a se perder diante de tantos assuntos, todos significativos. Exemplo disso é o núcleo dos vigilantes da fronteira cuja intolerância logo se converte em agressividade e uma licença para matar que ninguém lhes outorgou. Chefiados por Mateo, papel de Álvaro Cervantes, eles se envolvem num crime envolvendo Paloma, personagem de Ana Wagener, passam por um julgamento que todos sabem como há de acabar, e, assim, estão liberados a perpetuar seus esquemas criminosos. Esse terceiro alicerce do tripé que sustenta a narrativa, de longe o mais fraco, poderia ajudar a tornar ainda mais forte a atmosfera distópica da trama central, mas encaminhada tão atabalhoadamente, serve menos para esclarecer que para confundir.
Outra percepção exitosa de Calvo foi escolher centrar seu filme na amizade de Adú e Massar. Criatura alijada de seu mundo, da mesma forma que o personagem de Oumarou, Massar cresce muito além do esperado graças à desenvoltura dramática de Adam Nourou, especialmente depois que Alika sai de cena de forma abrupta e trágica. A saga a que se assiste desse ponto até o encerramento da história com os dois garotos encabeçando uma verdadeira batalha pela sobrevivência compensa qualquer deslize de Salvador Calvo, que peca pelo excesso, nunca pela escassez. O público chega ao fim de “Adú” com a certeza de que deveria lamentar haver a necessidade se fazer um filme como esse, tanto mais se toma o argumento de que aquela é a rotina de milhões de pessoas e que seu drama toma forma diante dos olhos de uma humanidade cada vez mais aparvalhada e que se importa cada vez menos com eles.
Filme: Adú
Direção: Salvador Calvo
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 9/10