A moda brasileira tem sido palco de uma efervescência criativa, em que designers de diversas regiões do país têm encontrado espaço para expressar suas identidades culturais e histórias pessoais. Nesta 57ª edição da São Paulo Fashion Week, as marcas Catarina Mina e Marina Bitu deram o destaque ao trabalho manual feminino cearense, o estilista Walério Araújo prestou homenagem à sua mãe, que é pernambucana, assim como ele, e a Dendezeiro se destacou, novamente, com seu DNA baiano.
O resgate das tradições, o olhar para o cotidiano e a valorização das raízes culturais são elementos essenciais que permeiam as coleções, reforçando a importância do Nordeste como fonte inesgotável de inspiração e criatividade na moda contemporânea brasileira.
A marca cearense Catarina Mina estreou na São Paulo Fashion Week com uma coleção que homenageia as artesãs e sua tradição de trabalho manual. Composta por peças feitas à mão e utilizando seis técnicas artesanais diferentes, a coleção destaca a beleza da renda e o papel das artesãs como guardiãs de uma tradição cultural valiosa. A predominância feminina valorizando a região do Ceará é evidente.
“Eu fico muito feliz de estar puxando esse movimento junto com tantas mulheres incríveis olhando para o lugar da mulher”, conta a designer Celina Hissa. Ela ressalta também a importância do artesanato como geração de renda para mulheres, no sustento de famílias e na valorização do trabalho doméstico.
A marca, que promove ações para valorizar e preservar o artesanato há cerca de 18 anos, conta com uma rede de 450 artesãs. A linha representa a autenticidade do Nordeste, assim como Marina Bitu, que nasceu também no Ceará.
“Quando nos colocamos como uma marca nordestina a nível nacional, estamos também dizendo para esse Brasil que existem outros polos que não só o Sudeste para os quais temos que olhar. E que fazem moda, não só fazem roupa”, diz Marina Bitu.
Marina Bitu é liderada por duas mulheres e busca introduzir suas referências culturais nordestinas em um cenário cosmopolita, destacando a diversidade e a riqueza cultural. Nos últimos anos, a visibilidade da marca cresceu, e Bitu afirma que o momento atual da moda tem despertado mais atenção em regiões brasileiras fora do Sudeste.
“Os criadores nordestinos nos últimos anos fizeram um trabalho muito importante, principalmente ao atuarem na manutenção dos nossos saberes tradicionais, dos nossos fazeres manuais. E eu acho que isso tem sido um movimento muito interessante e muito importante. Acho que é de fato um divisor de águas na história da nossa moda brasileira”, completa.
Na coleção atual, inspirada no Cariri, as principais referências são a geologia da Chapada do Araripe —localizada entre Ceará, Pernambuco e Piauí— e as manifestações culturais locais, também com o foco nas mulheres como criadoras e mantenedoras das tradições artesanais.
Já Walério Araújo, que está na estrada há mais anos do que as marcas acima, tem um outro olhar do Nordeste. Natural de Pernambuco, o designer busca mostrar suas raízes de uma forma ousada e criativa em suas roupas. Cores vivas, estampas exuberantes e texturas criativas costumam marcar suas criações. Nesta temporada, Araújo prestou uma homenagem à sua mãe, Dona Maria do Carmo, conhecida como Dona Neném, que completa 95 anos neste ano.
“Eu e minha mãe temos uma relação muito próxima. Sendo o caçula, sempre fui tratado como o eterno bebê, e ela sempre me chama carinhosamente de ‘meu menino’. Quando chego em casa, é comum ouvi-la perguntar: ‘Cadê meu menino?’. Minha irmã é quem cuida dela, mas nossa conexão é única”, explica o estilista
O designer explora uma variedade de técnicas manuais e materiais, desde pedrarias e rendas até estampas inspiradas em elementos regionais. As referências vão da gastronomia, religião e cultura regional do Nordeste, em uma mescla única de cores, estampas e materiais.
“Estou fazendo 54 anos”, conta Walério Araújo que fez aniversário no dia do desfile, 12 de abril. “Decidi homenagear minha mãe, que está completando 95 anos. Queria transmitir todo meu amor e gratidão por ela com esse desfile.”
Silhuetas inspiradas nos anos 1980 e acessórios eternizados em ouro também fazem parte da narrativa, remetendo a momentos marcantes da vida do estilista e de sua mãe. Com uma paleta de cores suaves, como rosa, branco e nude, há o contraste com estampas vibrantes e detalhes em renda francesa
Entre as peças da coleção, elementos nordestinos são traduzidos em looks que representam o cuscuz e o ovo, alfaiatarias com folhagens, sintetizados detalhes de um vida interiorana e lembranças afetivas incorporadas em retratos com pedrarias contam uma história de quase 100 anos.
Já Hisan Silva e Pedro Batalha, criadores da marca Dendezeiro, dão todo o seu enfoque à Bahia, que faz parte da identidade da marca desde que nasceu, em 2019. Enquanto a indústria tem resgatado o regionalismo nordestino, com trabalhos, Silva e Batalha nunca deixaram de mostrar essa importância, assim como Walério Araújo.
“O Nordeste é uma referência constante para nós, pois a base da Dendezeiro é lá. Todos os dias eu estou em Salvador, todos os dias eu estou no Nordeste”, conta Hisan Silva. “Esse é um ponto muito importante na Dendezeiro, amamos essa mistura de alfaiataria com street style. Sempre estamos nas ruas observando as pessoas e como elas se comportam. E como Salvador é a nossa praça, estamos sempre atentos em como as pessoas se comportam lá”, completa.
Linha apresentada na SPFW, os estilistas buscaram equilibrar os sentimentos de medo e liberdade em suas criações, refletindo a complexidade da experiência humana. As peças mapeiam diferentes personalidades e emoções, representando a coexistência desses universos dentro de cada indivíduo.
Hissan Silva reflete sobre a onda de enaltecimento das marcas nordestinas em grandes eventos de moda em outras regiões do Brasil. “O que significa valorização? Eu acho que tem muito sobre conseguir fazer as marcas mostrarem seu trabalho, mas como é que elas sobrevivem? Eu acho que isso gira em torno do Nordeste desde sempre.”
Ele observa que o fenômeno das marcas nordestinas dominando o cenário não é novo, lembrando o impacto de gerações anteriores, como o caso da designer baiana Isaac Silva ter se mudado para São Paulo. “Como é que a gente consegue fazer com que a valorização não aconteça só em São Paulo?”, diz Hissan Silva, completando que é preciso uma estrutura de moda nacional que realmente capacite as pessoas além da bolha paulistana.
Silva destaca que quando se está no Nordeste, surge essa necessidade constante de considerar diferentes ferramentas e abordagens para enfrentar esses desafios. A dupla incorpora sua influência cultural a todas as suas coleções e dá palco para artistas regionais também. Nesta temporada, voltam a colaborar com a tapeçaria do artista baiano Renan Estivan, utilizando estampas de formas diferenciadas.
A dupla afirma que na temporada passada, ocorreu um aumento significativo de designers nordestinos, especialmente da Bahia, que estão conseguindo assinar suas próprias peças. A região sempre foi reconhecida como um local de criatividade, entretanto, havia um consumo e réplica de suas criações sem que o nome da Bahia estivesse associado.
Colaborou Andreza Oliveira e Vitória Macedo.
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