Desde que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou a vacina contra a dengue da fabricante japonesa Takeda no Brasil, em março de 2023, postagens nas redes sociais questionam o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a respeito da demora na incorporação do imunizante ao SUS (Sistema Único de Saúde).
Atualmente, só é possível se vacinar na rede privada, onde o imunizante é ofertado por preços que variam de R$ 300 a R$ 800 a dose —o fabricante recomenda tomar duas. Até o dia 26 de outubro, o Brasil já tinha mais casos de dengue em 2023 do que em todo o ano de 2022 (leia mais abaixo).
Em outubro, a OMS (Organização Mundial da Saúde) passou a recomendar a vacina contra a dengue desenvolvida pela Takeda, chamada de Qdenga. O Ministério da Saúde não informou se há previsão para que a vacina chegue ao SUS. A pasta diz aguardar informações da Takeda para dar seguimento ao processo, mas a farmacêutica afirma não ter recebido solicitação oficial e diverge de dados apresentados pelo governo.
A seguir, leia mais informações verificadas pelo Comprova para entender o motivo de a vacina ainda não ter chegado ao SUS.
Trâmite administrativo
De acordo com o Ministério da Saúde, para que a vacina Qdenga seja incorporada ao PNI (Programa Nacional de Imunizações), a farmacêutica precisa apresentar uma proposta à Conitec. Essa proposta deve conter uma estimativa de custos, uma indicação de público-alvo, informações de eficácia na prevenção da doença, entre outros dados.
A proposta é analisada pelos membros da comissão, que inclui, além das secretarias do Ministério da Saúde, representantes do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), da Anvisa, do CNS (Conselho Nacional de Saúde) e do CFM (Conselho Federal de Medicina).
A 123ª reunião da Conitec, em 5 de outubro, analisou a proposta apresentada pela Takeda, mas não houve resposta definitiva sobre a incorporação ou não do imunizante ao PNI. É possível assistir à reunião na íntegra aqui.
Pedido de informações e alto custo
Em nota, o Ministério da Saúde informou que a Conitec, na reunião do dia 5 de outubro, “deliberou por unanimidade que são necessários maiores esclarecimentos por parte do fabricante (Takeda) em relação à capacidade de entrega da vacina Qdenga ao Brasil, além de outras informações técnicas sobre o imunizante”. Para a comissão, não é possível deliberar sobre a incorporação do imunizante ao PNI “sem os esclarecimentos adicionais”.
Entre as informações solicitadas pela Conitec à empresa Takeda estão: dados sobre a capacidade produtiva do laboratório e o quantitativo de imunizantes que seria entregue ao país; esclarecimentos sobre a faixa etária considerada e a não inclusão de outros públicos; e a proposta de negociação do preço da Qdenga, considerado muito alto pelo Ministério da Saúde.
Segundo a pasta, o valor por dose estabelecido pela Takeda está muito acima daquele fixado em qualquer outra vacina presente no PNI. Por meio de nota, o ministério explicou ainda que a fabricante submeteu a proposta para duas faixas etárias (de 4 e de 55 anos), e que a incorporação do imunizante ao PNI para esses grupos “traria um impacto orçamentário muito elevado, de cerca de R$ 9 bilhões em cinco anos”.
De sua parte, a Takeda informou que “a proposta de incorporação encaminhada […] à Conitec abrange os dois extremos da população, entre crianças e adultos”. Além disso, a fabricante afirmou que “a faixa etária de 4 a 60 anos de idade refere-se à aprovação obtida pela Qdenga na Anvisa”.
O Ministério da Saúde apontou ainda que, de acordo com a bula da Qdenga aprovada pela Anvisa, a vacina não é indicada para a população mais vulnerável aos casos graves e mortes por dengue, que inclui crianças abaixo de 4 anos e pessoas idosas acima de 60 anos.
Questionado, o ministério não estimou uma data para a entrada do imunizante no sistema público de saúde. Isso porque, após receber os esclarecimentos da Takeda, a Conitec irá discutir novamente a proposta da fabricante e analisar a incorporação ou não da vacina ao programa.
A Comissão tem 180 dias, prorrogáveis por mais 90, para a tomada de decisão. Todas as recomendações emitidas pela Conitec são ainda submetidas à Consulta Pública pelo prazo de 20 dias, exceto em casos de urgência do tema, quando o período pode ser reduzido para 10 dias. Ao final dos trâmites, cabe ao Ministério da Saúde a decisão final sobre a incorporação da nova tecnologia no SUS.
O que diz a Takeda
Em nota, a Takeda afirmou que submeteu a proposta de incorporação do imunizante ao PNI em 28 de julho deste ano, e que o documento foi protocolado em 31 do mesmo mês. O dossiê continha a “descrição das evidências científicas, através de uma Revisão Sistemática da Literatura, descrição dos estudos clínicos em andamento e planejados, um estudo de custo-efetividade sob ambas as perspectivas do SUS (Sistema Único de Saúde) e da Sociedade, além de uma análise de impacto orçamentário”.
Sobre as faixas etárias cobertas pela vacinação, a farmacêutica disse que propôs a priorização de grupos específicos, solicitando a avaliação da incorporação da Qdenga para indivíduos de 4 e 55 anos de idade. “A proposta […] encaminhada pela Takeda à Conitec abrange os dois extremos da população, entre crianças e adultos”, diz a nota. O documento afirma ainda que “a faixa etária de 4 a 60 anos de idade refere-se à aprovação obtida pela Qdenga na Anvisa”.
Além disso, a empresa afirma que colocou também à disposição uma análise de vários cenários de vacinação envolvendo diferentes faixas etárias e expectativas de cobertura vacinal.
A Takeda destaca ainda estar ciente de que o Conitec não emitiu parecer definitivo sobre a incorporação da vacina ao PNI porque havia a necessidade de mais informações para apoiar a tomada de decisões. Segundo a fabricante, até o dia 1º de novembro, a empresa não recebeu documento oficial requisitando os esclarecimentos.
Vacina do Instituto Butantan
Além da Qdenga, já aprovada pela Anvisa, uma vacina contra a dengue está sendo produzida no país. O Instituto Butantan, em parceria com a farmacêutica MSD (sigla em inglês para Merck Sharp and Dohme), está desenvolvendo uma vacina de dose única, chamada Butantan-DV. O imunizante é derivado de uma tecnologia do Instituto Nacional de Saúde (National Institutes of Health, em inglês), dos Estados Unidos, licenciada em 2009. As fases 1 e 2 do ensaio clínico foram desenvolvidas nos EUA (2010-2012) e no Brasil (2013-2015), respectivamente. As informações estão disponíveis no Portal do Butantan, em publicação de 16 de dezembro de 2022.
As duas primeiras fases do ensaio clínico mostraram que a vacina induz a produção de anticorpos contra os quatro sorotipos do vírus, o que, segundo o Instituto Butantan, é o maior desafio na produção de um imunizante contra a dengue. A dificuldade se explica pelo fato de que é possível ser infectado mais de uma vez pelos diferentes sorotipos, com chances de agravamento da doença e risco de morte.
Já os resultados preliminares da fase 3, que teve início em 2016, mostraram uma eficácia de 79,6% para evitar a doença. Os dados foram obtidos a partir do acompanhamento por dois anos de mais de 16 mil brasileiros que receberam a vacina. Durante o período delimitado, nenhum participante do ensaio apresentou caso grave da dengue. Foram avaliados voluntários de 2 a 59 anos de idade. A previsão para finalização do estudo é 2024, quando o último participante completar cinco anos de acompanhamento.
A Butantan-DV é tetravalente, ou seja, feita para proteger contra os quatro sorotipos do vírus da dengue (DenvENV-1, Denv-2, Denv-3 e Denv-4). Caso a vacina seja aprovada pela Anvisa, após a conclusão do ensaio clínico, ela poderá ser incorporada ao PNI e ofertada gratuitamente via SUS.
Foco da doença
A reportagem conversou com Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, sobre as vacinas da Takeda e do Instituto Butantan, além do processo de análise da Conitec. Para o especialista, é preciso entender que a dengue tem impacto na população, mas apresenta números de casos menores do aqueles causados pela Covid-19, por exemplo. Considerando esse contexto, “provavelmente uma vacina contra a dengue não vai ser de uso extensivo em todo o Brasil, mas será utilizada para atacar focos onde há o crescimento da doença”, explicou.
O médico destacou que a análise da Conitec é importante para garantir a segurança do imunizante e afirmou que é muito provável que haja a aprovação da Qdenga.”Não tenho dúvidas, por tudo que eu li sobre o imunizante da Takeda, que a Conitec vai se manifestar favoravelmente. A partir daí, o Ministério da Saúde deverá negociar com a fabricante a compra de alguma quantidade para que as doses sejam usadas de forma mais inteligente, como a estratégia de não usar a vacina no Brasil inteiro, mas em áreas focais”, afirmou.
Em relação ao imunizante do Instituto Butantan, o médico sanitarista disse que talvez haja uma expectativa do Ministério da Saúde em ter uma vacina nacional. “[A Butantan-DV] tem uma avaliação muito boa, mas já está em teste há quase quatro anos”, destacou. De acordo com Vecina, ainda não foi possível finalizar os estudos porque há uma dificuldade em aprovar a vacina do sorotipo número quatro, considerando o baixo número de casos desse tipo da doença. “Não sei até que ponto isso pode estar interferindo na decisão, mas espero que não”, complementou.
Aumento da dengue no Brasil
De acordo com a OMS, a incidência de dengue aumentou em todas as regiões do mundo, principalmente nas Américas. O Brasil é responsável por 80% dos casos registrados no continente.
Até o dia 1 de novembro deste ano, segundo o Ministério da Saúde, foram registrados 1.638.563 casos de dengue no país. Mesmo faltando dois meses para o fim do ano, o número de casos em 2023 já é maior do que o do ano passado, quando foram registrados um milhão de casos. Só em 2022, foram mais de mil mortes, o ano mais letal da série histórica até então. Este ano, também já chegamos aos mil óbitos. Alguns municípios brasileiros estão em situação epidêmica.
A disseminação da dengue e outras doenças tropicais está ligada às mudanças climáticas, dizem especialistas. Dependentes das altas temperaturas para sua disseminação, a malária, a chikungunya, a doença de chagas, a esquistossomose e a leishmaniose, além da própria dengue, são beneficiadas pelo clima cada vez mais quente e úmido.
A falta de um inverno bem definido, com temperaturas amenas, também leva a uma constância nos registros ao longo do ano, em vez de uma diminuição durante as estações “frias”, como é esperado. O cenário para o futuro próximo não é animador, e alguns especialistas falam em uma possível epidemia de outro tipo de dengue no próximo ano.
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