A personagem-título de “Cindy La Regia” sabe-se parte de um grupo bastante privilegiado de pessoas que contam o tempo pelo número de viagens internacionais ao longo de doze meses, ao fim das quais voltam para seus palacetes e esperam até o fim de semana, quando chovem os convites para algum rega-bofe sem hora para acabar. Cindy, ou melhor, Cíntia, é a blogueira mais famosa de San Pedro Garza García, cidadezinha de Nuevo León, no nordeste do México, e uma inspiração para as jovens sonhadoras do município e seu pouco mais de 120 mil habitantes.
Como se tudo fosse perfeito demais na vida dessa patricinha (ainda se diz “patricinha”?), a heroína do filme de Catalina Aguilar Mastretta e Santiago Limón sente que está a perder uma boa parte da festa e cancela o baile, sem saber muito bem por que e muito menos de que lhe serve essa súbita liberdade que buscava tanto. Baseado nos quadrinhos virtuais de Ricardo Cucamonga, o roteiro de María Hinojos dá preferência à anti-heroína, levando-a a embarcar em tramas que o cartunista ainda não abordara, o que significa que os diretores usam de toda a autonomia a fim de conquistar outros públicos, tarefa que executam sem qualquer dificuldade.
No dia em que completa 24 anos, Cindy é pedida em casamento por Pepe, o noivo interpretado por Carlos Gatica, e então seu mundo cai. Diante dos pais, amigos e parentes, uma elite cada vez mais isolada num país rico, mas escandalosamente desigual, a moça sai em desabalada carreira e se tranca num dos armários do closet maior que muito apartamento, sendo encontrada, não por acaso pela camareira Mary, de Mayra Batalla.
À noite, depois de já dançadas todas as rancheras e tomados todos os mescais, ela enche malas cor-de-rosa com Guccis e Pradas e viaja à Cidade do México, onde espera ser acolhida pela prima Angie, de Regina Blandón. Cassandra Sanchez Navarro começa sem que se tenha muito claro para onde a personagem deve ir; entretanto, o carisma da atriz, fortalecido pela direção segura de Mastretta e Limón garante o propósito do enredo, qual seja, convencer a audiência quanto à metamorfose de Cindy, de uma eterna adolescente um tanto avoada, numa mulher que agarra com convicção a oportunidade de vencer por seus próprios méritos, transformação que os diretores evidenciam inclusive nos figurinos, de Agustin Vega, antes coloridos e espalhafatosos, com predomínio do rosa e seus mil tons em vestidos justos, passando depois aos terninhos pretos e grafite que denotam uma ascensão profissional gradativa e suada. Nessas, conhece o fotógrafo Mateo, de Giuseppe Gamba, mas acaba cometendo um deslize com Angie, que, como não poderia ser de outro modo, é capaz de contornar no final.
Esses trêsarcos do eixo narrativo — a queda, a mudança e a redenção de Cindy, a Bela — são levados por Mastretta e Limón de um jeito destacadamente fluido, não se notando jamais a pretensão da catequese feminista, ainda que ideias como empoderamento, liberdade sexual e busca por sentido estejam despontando. Quem dera se todo panfleto fosse assim, sutil, bem-humorado, docemente persuasivo. Ninguém se furtaria a empunhar bandeiras, malgrado pudesse se arrepender muito depois.
Filme: Cindy La Regia
Direção: Catalina Aguilar Mastretta e Santiago Limón
Ano: 2020
Gêneros: Comédia/Romance
Nota: 8/10