‘Manas’, primeiro longa de ficção da cineasta Marianna Brennand, venceu o Director’s Award, prêmio máximo da Giornate Degli Autori, no Festival de Veneza. A seção é dedicada a filmes que trazem o trabalho de novos diretores com linguagem ousada e propostas novas para o cinema contemporâneo.
Estou transbordando de felicidade e emoção. Esse prêmio é importante para mim como diretora, para toda a equipe brilhante que fez esse filme, para todas as “manas” do Pará, do Brasil e do Mundo. E é um prêmio que eu recebo em nome do nosso cinema brasileiro, ele representa nossa força, nossa verdade, nossa ousadia e coragem em resistir assim como nossa protagonista resiste e reage bravamente. Mariana Brennand, após receber prêmio em Veneza
A diretora já havia celebrado a boa recepção do longa após a estreia do filme no festival, no último dia 2. “Estou muito emocionada, realizada, de alma lavada de ver este filme nascer aqui na sessão tão especial. Todo que todos se engajaram. Eu senti que o filme penetrou. A história da Tielle tocou quem estava lá nessa 1h40 de jornada de “Manas'”, comentou na ocasião.
“Manas” é protagonizado por Jamilli Correa, que vive Tielle, jovem de 13 anos que mora na Ilha do Marajó (PA) junto do pai, Marcílio (Rômulo Braga), da mãe, Danielle (Fátima Macedo), e dos três irmãos. Ela começa a entender que o futuro não lhe reserva muitas opções. Encurralada pela resignação da mãe e movida pela idealização da figura da irmã que partiu, ela decide confrontar a engrenagem violenta que rege a sua família e as mulheres da sua comunidade. Para isso, conta com uma ajuda crucial: a policial Aretha (Dira Paes).
Filme rodado na região amazônica, “Manas” traz uma história que aparentemente é local, mas revela que o tema do abuso sexual de menores, que ocorre principalmente em ambiente familiar e com pessoas próximas da família; é um tema universal. Entre a dicotomia de que quem mais deveria cuidar e proteger, mas no fundo se sente proprietário de seu corpo e sua vida, e enxerga nele o desejo sexual, Tielle vai descobrindo nas entrelinhas da sociedade as contradições, os silêncios diante dos crimes e injustiças e do machismo estrutural que violenta e mata.
A sessão de première mundial do filme, no dia 2, foi calorosa, com palmas entusiasmadas e perguntas de um público internacional interessado em saber mais sobre a realidade brasileira, mas trazendo sempre perspectiva de que a violência ocorre em todas as culturas e em todos os níveis sociais.
No caso de “Manas”, a menina Tielle, mesmo sem ter informação sobre o que passa, entende que a violência que se repete há gerações com mulheres de sua família e de sua comunidade, tem de acabar. Ela passa a ser “balseira”, como se chamam as garotas que vendem produtos nas balsas que passam pelo rio Tajipuru, que margeia a região, e encontra uma realidade tão dura quanto a de sua casa, em que meninas se prostituem a troco de quase nada.
Filmado com delicadeza, mas firmeza, “Manas” não vitimiza ainda mais as tantas meninas brasileiras que sofrem com este abuso, mas respeita, entra com cuidado em suas vidas e suas casas, revela as nuances de uma realidade que mistura afeto em casa com moralismo, machismo estrutural e ausência de um poder público que realize políticas de educação e cuidado.
Tielle, como tantas milhares de garotas, está quase sozinha. Mas é nas manas que ela encontra sua força. É também na informação que chega mais lenta do que deveria, mas que chega e revoluciona suas vidas, além do poder público que também demora, mas hoje está mais presente para vigiar, proteger e cuidar das jovens dessa região.
A fotografia do filme, a cargo de Pierre de Kerchove, é natural, aproveitando a luz e a beleza da exuberante região amazônica, mas sem nunca estetizá-la. Mesmo nas cenas noturnas, a iluminação é discreta, aproveitando sempre a atmosfera real.