* Thatiane Moreira
Mesmo que nestas eleições a identidade econômica deva prevalecer frente à identidade religiosa, a relevância das pautas morais não pode ser desconsiderada. Afinal, o fato de Jair Bolsonaro ter sido um governante que errou tanto e, ainda assim, conseguiu se manter como um candidato competitivo mostra o peso da identidade religiosa e das pautas morais no processo eleitoral. Na reta final da campanha, são os valores morais que estão ditando a estratégia bolsonarista nas redes digitais.
Segundo a pesquisa Datafolha de 30 de setembro, Lula ampliou vantagem entre católicos (57% a 29%) e, Bolsonaro segue líder entre os evangélicos (53% a 32%). Quando falamos de evangélicos no Brasil é preciso ter em mente a distinção entre de um lado os evangélicos tradicionais ou históricos, como os batistas, metodistas entre outros, e de outro lado os pentecostais, como a Assembleia de Deus. Dentro da tradição macro pentecostal se encontram os neopentecostais, uma ramificação que tem início nos anos 80 no Brasil, tendo como expoente principal a Universal do Reino de Deus.
O afastamento dos evangélicos das pautas do PT começou desde antes do advento do bolsonarismo, mas ganhou destaque em 2018, quando os protestantes tradicionais se juntaram com os neopentecostais e contribuíram para a vitória do capitão da reserva. Na eleição deste ano, a rejeição dos evangélicos ao PT deve voltar aos padrões de 2014, ou seja, a diferença entre Bolsonaro e Lula entre os evangélicos não deve ser tão avassaladora como foi em 2018.
Por outro lado, o peso dos valores cristãos vigorou nas redes digitais bolsonaristas durante toda campanha eleitoral, ganhando mais fôlego nestas últimas duas semanas. É aqui que entra o papel de uma figura que pode ou não ser padre, o candidato Kelmon (PTB). Melhor mesmo chamar apenas de “candidato padre”, ou ainda de “laranja”, “cabo eleitoral” ou “padre de festa junina”. Seja como for, esta figura serviu muito bem a seus propósitos: ecoar a ideia da necessária relação entre valores cristãos e a política, e o entendimento de que seria impossível ser ao mesmo tempo cristão e votar na esquerda.
Tanto nas redes digitais quanto nas falas de Bolsonaro e do “padre”, as noções de verdade e liberdade apareceram em relação a um certo entendimento sobre o bom e o belo: as alocuções continham oposições entre, de um lado, os “valores conservadores” ligados ao bom e ao belo, e de outro, “a ideologia da esquerda” ligada ao ruim e ao feio. Aqui aparece uma ligação entre o princípio estético e o princípio moral.
Não por acaso, é frequente nas redes digitais bolsonaristas a ideia de que a base da sociedade ocidental seriam a filosofia grega, o direito romano e os valores judaico-cristãos, ou seja, haveria uma vinculação necessária entre a base da sociedade ocidental e o conservadorismo, de modo que ao se atacar o segundo se destruiria a primeira.
Assim, independentemente das crenças conscientes no cristianismo, o indivíduo ocidental seria um produto desta filosofia, no sentido dos valores que formariam a sociedade: liberdade, individualidade e respeito a condição humana.
Neste contexto, aparece também a ideia de que a “esquerda” buscaria relativizar a percepção estética a fim de relativizar os valores morais. A suposta sexualização excessiva promovida pela “esquerda” seria uma forma de relativizar a apreciação estética, o que significaria atacar a capacidade de criação imagética de uma sociedade. Aqui, a relação entre bom, belo, verdade e liberdade se deixa ver por completo.
É interesse perceber o que é entendido por liberdade religiosa: não abrange todas as religiões, mas diz respeito ao cristianismo (afinal, a sociedade ocidental seria formada pelo tripé direito romano, filosofia grega e valores judaico-cristãos). Assim, qualquer religião que não atenda a estes valores seria danosa para a própria estrutura da sociedade ocidental.
Disto se conclui, também, que a “verdadeira democracia”, para garantir o adequado funcionamento e aprimoramento da sociedade, deveria ser pautada nos valores cristãos, como caridade, compaixão, liberdade, individualidade e respeito a condição humana. Haveria, portanto, uma relação intrínseca entre religião e política.
Há nestas ideias o entendimento de que Estado laico não significa Estado ateu ou avesso ao cristianismo — ao contrário, representaria apenas uma mera redistribuição de exercícios entre o corpo eclesiástico e o corpo leigo cristão, de modo que mesmo o Estado laico precisaria se pautar em valores e princípios cristãos. Daí novamente a relação indissociável entre bom, belo, verdade e liberdade.
Portanto, o sentido de liberdade estaria assentado também em bases cristãs. De modo que pautas que poderiam pertencer ao campo das liberdades, como o direito ao aborto, a liberalização das drogas, a liberdade sexual, não caberiam nesta discussão. O direito ao aborto seria uma clara afronta ao direito à vida, a liberalização das drogas ampliaria o uso de entorpecentes, que causaria a desunião das famílias.
A liberdade sexual, por sua vez, é lida de dois modos, como um fator de destruição da família e como uma forma de manipulação. Há a ideia de que, à medida que se perde todas as outras liberdades (a suposta censura ou controle das escolas e da mídia), a liberdade sexual tenderia a aumentar, como uma compensação. Segundo as mensagens que vigoram nas redes digitais bolsonaristas, a liberdade sexual acorrentaria o indivíduo a uma compulsão neurótica pelo sexo, promovendo a idolatria do eu (do prazer individual), que suplantaria os valores relevantes para a sociedade (amizade, amor, companheirismo) e funcionaria como uma forma de controle.
Aqui está presente a ideia de que a “esquerda” utilizaria a liberdade sexual para afrontar a base judaico-cristã da sociedade, o que faria parte de uma estratégia para destruir as bases de formação da sociedade ocidental, estágio essencial para a instauração de uma suposta hegemonia de poder (conhecida no bolsonarismo como “agenda 2030” de dominação cultural e política da esquerda, que agiria junto com o “Fórum de São Paulo”).
Estamos diante de três noções essenciais para se entender a construção de sentido no bolsonarismo, principalmente no que se refere à ideia de que “nossa liberdade está em risco”: a manipulação, o autoritarismo e a perseguição. A ideia de manipulação aparece como oposição à verdade e o autoritarismo como oposição à liberdade.
Segundo as redes digitais bolsonaristas, para que ocorra a subversão de valores, a educação é o ponto central. Há a ideia de que a “ideologia de esquerda” controlaria a educação, principalmente na figura de Paulo Freire. Ao propagar a ideia de que a educação seria opressora, Paulo Freire, segundo as mensagens, condenaria “até mesmo a educação que advém da relação pai e filho” e colocaria como solução o fim tanto da hierarquia como da autoridade, que para os conservadores seriam pilares essenciais “para a família e para a manutenção da pátria”.
É interessante perceber que, tanto nas redes digitais quanto nos debates, há a construção da ideia de incongruência entre “ser de esquerda” e “ser cristão”, como se houvesse uma incompatibilidade de valores. E mais, como a ideia de “verdadeira democracia” deveria seguir os valores cristãos, o que a “esquerda” chamaria de democracia na verdade seria uma forma autoritária de controle, pautada na subversão de valores.
É preciso afastar a política da religião, e isso não é nenhum juízo de valor sobre as religiões, nem mesmo significa que os políticos não possam professar sua fé, desde que fora do solo político. Na reta final de campanha, observamos uma política de joelhos, em que o adversário passa a ser visto como inimigo (Deus x demônio), as divergências passam a ser vistas como a luta do bem contra o mal, e as soluções deixam de lado as leis e passam a defender o extermínio. Em suma, torna-se impossível qualquer forma de democracia.
* Thatiane Moreira é mestranda em Ciência Política pela Unicamp