Assustador alerta de como as autocracias pelo mundo promovem a corrosão por dentro dos regimes democráticos, o livro “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, dá diversos exemplos de que em muitos países esse processo se iniciou pela aprovação de mudanças para reduzir o papel do poder Judiciário. Foi assim, por exemplo, na Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro.
Assim, antes de se repetir que o “Brasil corre o risco de virar uma Venezuela”, é bom se avaliar com quem, de fato, o Brasil corre o risco de virar uma Venezuela. O presidente Jair Bolsonaro, que tenta a reeleição, e seu vice-presidente, Hamilton Mourão, que se elegeu senador pelo Rio Grande do Sul, já andaram ventilando que cogitam fazer correr uma emenda constitucional que aumenta de 11 para 15 o número de ministros do Supremo Tribunal. Essa modificação garantiria a Bolsonaro maioria na Suprema Corte. É exatamente o caminho que corroeu a democracia Venezuela.
Sugerido por Montesquieu no seu “O Espírito das Leis”, o sistema de freios e contrapesos entre os poderes é base importantíssima do bom funcionamento democrático. A ideia da separação, da equipotência e da interdependência entre os poderes permite garantir que um dos poderes sempre estará a postos para evitar e corrigir eventuais abusos dos outros.
O ódio de Jair Bolsonaro e dos seus aliados ao Supremo nada mais é do que isso: não foram poucas as vezes em que a Suprema Corte agiu para coibir ensaios autoritários do governo. Alexandre de Moraes, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que virou o vilão preferencial do bolsonarismo, pode ser alguém de temperamento duro e pouco simpático, mas está longe de ser alguém de esquerda, como se pinta.
É claro que, na mesma lógica do sistema de freios e contrapesos, o Judiciário também pode extrapolar. E houve de fato um certo desbalanceamento em muitos momentos. O problema é imaginar que Bolsonaro agora queira de fato corrigir tais desbalanceamentos ou avançar rumo à busca de apoio popular para corroer a democracia a partir de suas próprias regras, no caminho que o livro de Levitsky e Ziblatt propõem.
Para vir a conseguir isso, Bolsonaro precisaria, então, do apoio do outro poder da República, o Legislativo. E o avanço da bancada conservadora nas eleições do dia 2 de outubro, especialmente no Senado, animou alguns bolsonaristas no sentido de imaginar que isso poderia vir a ser possível, no caso de uma eventual reeleição. Mas seria mesmo?
De fato, Bolsonaro elegeu alguns que poderão vir a ser aliados importantes. Caso de Damares Alves (Republicanos), no Distrito Federal, que substituirá José Antonio Reguffe (sem partido). Mas, no frigir dos ovos, a avaliação que se faz, como mostramos aqui, é que, pelo perfil de atuação, Bolsonaro teria o alinhamento de metade dos senadores. Nas nossas contas, de 40. Nas contas que anda fazendo o próprio governo, 41, o que não é grande diferença.
Se esse alinhamento for mesmo automático – o que não é garantia –, seria o suficiente para, de fato, abrir um processo de impeachment contra um ministro do STF. Mas já não seria suficiente para condenar o ministro. Para isso, o quórum é de dois terços, ou 54 senadores.
Um outro problema: Bolsonaro teria que, de fato, conseguir eleger um próximo presidente do Senado fiel às suas propostas. Porque é ele quem acolhe ou não pedido de impeachment de ministros do Supremo. Damares está animada para essa tarefa. Mas o Senado elegeria uma senadora neófita, de primeiro mandato. Já há uma articulação no sentido de a oposição vir a apoiar um nome como o de Soraya Thronicke (União Brasil), uma senadora conservadora, mas não alinhada com Bolsonaro e que, talvez, não viesse a dar encaminhamento a um processo desse tipo.
“A visão inicial de que Bolsonaro teria conseguido um panorama para fazer o que quisesse talvez não seja tão verdadeira assim”. Observa o cientista político André Cesar. Para ele, mesmo alguns nomes mais próximos de Bolsonaro talvez não tivessem assim tanta inclinação para levar algo como um impeachment de um ministro do STF adiante. “Eu não vejo, por exemplo, a ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina com uma motivação igual à de Damares, por exemplo”, considera.
E, para aumentar a composição do STF, a dificuldade é maior ainda. Porque dependeria da aprovação de uma emenda constitucional. Três quintos no Senado em dois turnos e três quintos na Cãmara. São 308 deputados e 49 senadores.
Nada é impossível, mas nada também tornou-se assim tão fácil. Agora, é claro que Bolsonaro poderá ficar mais legitimado para tentar tais arroubos caso receba o aval da sociedade numa reeleição. Esse é o risco que agora se corre.