Recessão e crise de governo levam à renúncia de Liz Truss, primeira-ministra do Reino Unido – Zonatti Apps

Recessão e crise de governo levam à renúncia de Liz Truss, primeira-ministra do Reino Unido

Vida real de pessoas reais

Em 1995, afirmava, esta circunstância exigia encarar “os problemas materiais, sociais e culturais, morais ou espirituais que afetam a vida real das pessoas reais”, e “trabalhar em uma estratégia de longo prazo para a transformação da ordem (ou da des-ordem) que gera estes problemas.” O ponto, acrescentava ainda, estava em que ambas coisas deveriam ser encaradas “simultaneamente, ainda que de maneira diferenciada.”

Essa diferença se referia, entre outras coisas, ao papel do Estado (liberal) neste processo, o qual sem dúvida podia “escolher entre ajudar as pessoas comuns a viverem melhor e ajudar os estratos superiores a prosperarem ainda mais”, mas não tinha capacidade para transformar a ordem de coisas vigente. A isto acrescentava, por outro lado, que o apelo para construir a “sociedade civil” era “igualmente vão”, pois esta só podia existir na medida em que os estados dispusessem da capacidade de mantê-la e assumi-la como seu interlocutor para “realizar atividades legitimadas” por tais estados e para fazer “política indireta (isto é não partidária)” frente a estes. Com isso, com o declínio dos estados, necessariamente a sociedade civil está se desintegrando. Na realidade, é precisamente esta desintegração o que os liberais contemporâneos deploram e os conservadores festejam secretamente. Estamos vivendo a era do “grupismo”, a construção de grupos defensivos, cada um dos quais afirma uma identidade em torno da qual constrói solidariedade e luta para sobreviver junto com e contra outros grupos similares.

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Considerando o que foi dito, Wallerstein afirmava que a transição em curso no sistema mundial permitia trabalhar com eficácia nos “níveis local e mundial”. No entanto, trabalhar no âmbito do estado nacional tinha apenas “uma utilidade limitada” a objetivos de prazo muito curto ou a longo prazo, mas não envolvia o médio prazo, porque este supunha “um sistema histórico em marcha e funcionando bem.” Essa estratégia não é fácil de aplicar, porque as táticas de uma estratégia deste tipo são necessariamente ad hoc e contingentes, e por isso o futuro imediato se apresenta tão confuso.

Cabe lembrar que Wallerstein fez parte da geração de intelectuais e acadêmicos ocidentais que tiveram o mérito de estender para as ciências sociais e as Humanidades o que Frederico Engels atribuíra às ciências naturais ao dizer que cada fenômeno identificado por estas “afeta outro e é, por sua vez, influenciado por este; e é geralmente o esquecimento deste movimento e desta interação universal o que impede nossos naturalistas de perceber com clareza as coisas mais simples.”[2]

Até então, a geocultura do sistema internacional operava a partir da ideia de mercados nacionais que negociavam entre si sob a tutela de seus respectivos Estados, ainda que fosse em uma relação de interdependência “assimétrica”. A essa geração coube o mérito de examinar o mercado mundial em seu desenvolvimento histórico, incluindo aí as transições ocorridas na organização do sistema mundial que lhes dava o suporte político e cultural necessário para seu funcionamento.[3]

Esse desenvolvimento conheceu pelo menos três etapas. A primeira correspondeu à organização do mercado mundial em um sistema colonial, cuja crise deu lugar à Grande Guerra de 1914-1945. Esta abriu caminho para a segunda, em que foi criado um sistema internacional (interestatal, na realidade), a cuja crise faz referência o artigo que comentamos. Em meados da década de 1990, a transição para uma terceira etapa de organização do mercado mundial já estava em curso, ainda que a linguagem necessária para expressá-la em toda sua complexidade ainda estava – e está – em desenvolvimento.

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O que inclui, por exemplo, a formação do par global/local como alternativa facilitada – e não simplificada – ao conjunto internacional/nacional/local característico da geocultura liberal. E a partir deste processo de formação de uma geocultura nova renova-se sem dúvida a utilidade de voltar a ler o que Wallerstein nos dizia na conclusão de suas reflexões de 1995:

Agora cabe a todos os que ficaram fora do atual sistema mundial empurrar para a frente em todas as frentes. Já não têm como foco o objetivo fácil de tomar o poder do estado. O que têm que fazer é muito mais complicado: assegurar a criação de um novo sistema histórico agindo unidos e ao mesmo tempo de maneira muito local e muito global. É difícil, mas não impossível.

Notas
[1] Immanuel Wallerstein: “Depois do liberalismo?” Extraído do livro Depois do liberalismo. Siglo XXI editores, México, 1996.
[2] “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem” (1876). https://webs.ucm.es/info/bas/es/marx-eng/oe3/mrxoe308.htm#fn0
[3] A este respeito, por exemplo: Braudel, Fernand: A Dinâmica do Capitalismo (1985). Alianza Editorial. Madrid.

Guillermo Castro H. | Colaborador da Diálogos do Sul em Alto Boquete, Panamá.
Tradução: Ana Corbisier.


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