Quando “Rambo: Programado Para Matar” chegou aos cinemas há quatro décadas, Sylvester Stallone sequer sonhava em ser um “herói de filmes de ação”.
Sua carreira, depois de uma série de pontas em uma dúzia de filmes desde 1969, finalmente decolou com “Rocky, Um Lutador”, de 1976. Indicado ao Oscar de melhor ator, Stallone assumiu a ponta em filmes como “F.I.S.T.”, “A Taberna do Inferno” e “Falcões da Noite”, além da continuação “Rocky II: A Revanche”.
Quando “Rambo” chegou em 1982, era um filme sério baseado em um livro sério. David Morrell havia publicado “First Blood” uma década antes, com a Guerra do Vietnã ainda assombrando o inconsciente coletivo americano.
O livro era o retrato de um país doente, incapaz de lidar com seus próprios erros. Esse sentimento era traduzido no veterano John Rambo, que depois de lutar na selva vietnamita como um boina verde, soldado de elite americano, voltou para casa e encontrou não gratidão, mas somente desprezo.
Sem emprego e rodando o país como um nômade, Rambo chega em uma cidade no interior do Kentucky, é hostilizado pela polícia local e, traumatizado por suas experiências na guerra, responde com violência. O resultado é uma escalada brutal que resulta numa pilha de corpos – inclusive o do protagonista, morto com um tiro de espingarda na cabeça.
Stallone enxergou em Rambo o personagem perfeito para dar continuidade à sua evolução artística. O texto, afinal, não só abordava um tema importante numa América que custava a se curar do envolvimento no Vietnã, como também abria oportunidade para uma performance física, em que a boa forma adquirida em “Rocky” pudesse ser bem utilizada.
Até então, o projeto já havia passado por inúmeros diretores e astros em Hollywood, inclusive Al Pacino, Clint Eastwood e Nick Nolte. A chegada de Stallone, com duas indicações ao Oscar no bolso (seu roteiro para “Rocky” perdeu para o script de “Rede de Intrigas”), finalmente tirou “Rambo” da gaveta.
O astro logo tratou de operar algumas mudanças no texto original. Ao longo de “First Blood”, Rambo mata vários policiais que o perseguem, em uma espiral sombria que Stallone achou intensa além da conta. No roteiro final, a única morte em cena, a de um policial obcecado em apagar o veterano, foi acidental, quando ele cai de um helicóptero.
O clima sombrio chegava ao clímax quando Rambo, cansado de reencontrar um lar em um país que claramente o havia deixado de lado, comete suicídio ao forçar o coronel Sam Trautman (Richard Creena) a atirar em seu peito. A cena foi filmada (é fácil ser encontrada no YouTube), mas Sly e o diretor Ted Kotcheff optaram por outro final, em que Rambo é subjugado e preso.
Teria sido, mesmo com uma conclusão menos pessimista, um final digno para um personagem marcante em um filme intenso e impressionante. Mas Stallone não conseguiu deixar John Rambo de lado. Havia algo emblemático no personagem que ele, com faro apurado, acreditava valer a pena explorar.
Claro que Sly não estava de olho somente nos méritos artísticos do herói trágico. “Rambo: Programado Para Matar” foi a quinta maior bilheteria mundial em 1982 e seu primeiro sucesso fora da série “Rocky”, então com três filmes. Por outro lado, seu ângulo dramático, o do homem rejeitado por seu país, parecia esgotado.
“Rambo II: A Missão” chegou aos cinemas em 1985 com uma proposta totalmente diferente. Em vez de abordar mais uma vez a solidão dos veteranos em uma América combalida, o novo roteiro, co escrito por James Cameron, assumiu seu DNA como filme de ação. Uma mudança não necessariamente para melhor.
Sylvester Stallone enfeitou o poster do novo “Rambo” bombado, sem camisa e com um lança foguetes em punho. A trama, uma fantasia sobre prisioneiros de guerra americanos ainda em cativeiro nas selvas vietnamitas, era desculpa para Rambo usar um arsenal e, aí sim, despachar dúzias de inimigos – o que incluía militares russos, então grandes vilões do cinemão ianque.
O sucesso foi muito além do esperado. Além de ter seu poster estampando paredes em academias de todo o planeta, e de ser prato cheio para a turma com fetiche em armas de combate, “Rambo II” foi adotado politicamente pela ultradireita americana, encabeçada pelo então presidente Ronald Reagan. O filme trazia o “modo certo” de combater o inimigo.
Os números corroboraram o sucesso. Em 1985, “Rambo II: A Missão” só perdeu nas bilheterias para o fenômeno “De Volta Para o Futuro”. O outro combate de Stallone contra russos malvados, “Rocky IV”, ficou na terceira posição. Como o dinheiro movimenta o mundo, músculos logo tomaram a dianteira na cultura pop.
Nos anos seguintes, um punhado de outros astros beberam da fonte “músculos salientes + ação sem cérebro” promovida por “Rambo II”. Arnold Schwarzenegger lançou “Comando Para Matar” no mesmo ano, assim como Chuck Norris deu novo fôlego à sua carreira seguindo essa mesma filosofia em filmes produzidos pela lendária Cannon.
O próprio Stallone pareceu abandonar sua busca por integridade artística. Depois de “Rambo II” ele deixou seus músculos falarem mais alto em filmes tão diferentes, ao mesmo tempo tão semelhantes, como “Cobra”, “Falcão – O Campeão dos Campeões” e “Condenação Brutal”, além do inevitável “Rambo III”.
O “exército de um homem só” se tornou um subgênero que formou uma geração inteira de fãs de cinema – turma que ainda encontra eco em filmes como o recente “Adão Negro”. Os anos 1990 viram esse movimento se esvaziar, mesmo que Stallone e Schwarzenegger seguissem como sobreviventes.
Não que isso tenha feito diferença para Rambo, o personagem. Sua estampa na cultura pop foi muito além dos filmes protagonizados por Sylvester Stallone. Ganhou vida fora das salas de cinema.
Para espremer o herói até o caroço, os detentores de seus direitos o transformaram em marca lucrativa. Ele encabeçou gibis, foi protagonista de desenho animado infantil (“Rambo e a Força da Liberdade”), e teve meia dúzia de videogames com seu nome. Recentemente, ressurgiu como lutador em “Mortal Kombat 11”, com voz do próprio Stallone.
A comercialização de Rambo como produto ao longo de 40 anos emasculou o personagem, roubando-lhe do que o fez tão especial em primeiro lugar. Assistir a “Rambo: Programado Para Matar” hoje pode ser uma experiência frustrante para quem associa seu nome ao tipo de ação desenfreada que a própria mídia lhe reservou.
O próprio Stallone tentou resgatar Rambo em sua essência, ressignificando o personagem no cinema. Não deu muito certo. “Rambo IV”, de 2008, voltou à selva em uma aventura derivativa e enfadonha. Já “Rambo: Até o Fim”, de 2019, foi uma tentativa fracassada em recuperar o clima do primeiro filme. Em ambos, transborda a violência pela violência.
Talvez John Rambo fosse lembrado com mais carinho e dignidade se, em 1982, o cinema tivesse deixado que ele seguisse seu curso e cumprisse sua função dramática completa em “Programado Para Matar”. Mas não era para ser – e, a essa altura, também não importa.
Mesmo com a banalização das ideias trazidas por David Morrell em “First Blood”, “Rambo: Programado Para Matar” segue, 40 anos depois, como um filme essencial para entender os Estados Unidos no começo dos anos 1980. Um contraponto visceral com o cinema que mostrava, em dramas familiares, o “sonho americano” estilhaçado. Um filme que, por fim, provou que Sylvester Stallone podia ser o astro certo no momento certo.