Lá se vão quase três desde que a saga “Star Wars” deu o ar da graça nos cinemas. O filme era “A Ascensão Skywalker”, que encerrava não com fanfarra, mas com ruidos, a terceira trilogia da série. Em vez da celebração que acompanhou a primeira aventura feita sob a asa da Disney, “O Despertar da Força”, de 2015, a sensação fora de alívio.
A origem do escorregão foi o “filme do meio”. Muitos fãs (eu definitivamente não me incluo entre eles) torceram o nariz para “Os Últimos Jedi”, em que o diretor Rian Johnson arriscou um caminho diferente daquele sugerido por J.J. Abrams na produção anterior. Pecado supremo: o grande herói da série, Luke Skywalker (Mark Hamill), retornava como um personagem recluso, derrubado pela culpa e pelo fracasso.
A couraça de “Star Wars” apresentou uma fissura inédita, amplificada pelo fracasso de “Han Solo” em 2018. Quando J.J. Abrams retornou com “A Ascensão Skywalker”, o filme parecia menos o fim de um ciclo e mais uma colcha de retalhos, um pedaço de entretenimento feito com remendos. A série criada por George Lucas parecia, então, destinada ao estaleiro.
Mais ou menos nessa época, a plataforma de streaming Disney+ arregaçava as mangas para seu lançamento. O tiro inicial precisava ter impacto, e a marca “Star Wars” parecia a opção óbvia. “The Mandalorian” estreou em novembro de 2019, criação do cineasta Jon Favreau. De repente, os fãs da galáxia muito distante não pareciam mais órfãos.
Em oito episódios, todo o deslumbramento, a emoção e o senso de aventura que marcaram a série estavam de volta, distribuídos em um formato episódico que não tardou a cobrir os pecados cinematográficos da série. “Star Wars”, pelo visto, encontrara um novo lar.
O sucesso de público logo foi acompanhado pelo reconhecimento da crítica. Ao contrário dos personagens da nova trilogia, que nunca de fato criaram uma conexão firme com seu público, “The Mandalorian” trouxe uma coleção de figuras que, mais do que nunca, pareciam pertencer a “Star Wars”.
Não que a TV estivesse fora dos planos da série ainda com George Lucas no comando. Em 2009, quatro anos depois de encerrar os prequels com “A Vingança dos Sith”, o produtor criou uma sala de roteiristas para escrever uma centena de episódios do que seria uma nova série, expandindo o universo para além dos Dartn Vader da vida.
“Star Wars Underground” supostamente teria o caçador de recompensas Boba Fett como âncora, mas Lucas enxergava a proposta como um mergulho em cantos escuros do mundo que ele criara. A ideia empacou por seu custo astronômico, proibitivo para uma produtora independente como a LucasFilm.
Em 2012, contudo, a Disney colocou US$ 4 bilhões nas mãos de Lucas e arrematou a produtora e todos os seus produtos. A nova gerência ignorou o roteiro rascunhado pelo cineasta para novos filmes, convocou J.J. Abrams e o resto é história. “The Mandalorian”, entretanto, pareceu fechar um círculo.
Desde então, “Star Wars” existe exclusivamente na TV, mais especificamente na Disney+. “The Mandalorian” teve uma segunda temporada igualmente festejada e gerou uma série derivada honesta, porém de menor impacto: “O Livro de Boba Fett”. “Obi-Wan Kenobi” fez a ponte entre a TV e o legado da marca, mas terminou como uma compilação de ótimos momentos em uma temporada irregular.
Então veio “Andor”. Terminei de assistir ao último episódio de sua primeira temporada e cá estou, ainda impactado, tecendo estas linhas. Não existe, em todo o universo “Star Wars”, nenhum produto que traduza tão bem o conceito de “guerra nas estrelas” do que estes doze episódios centrados em um coadjuvante de um filme que sequer tinha o direito de ser tão bom.
“Rogue One: Uma História Star Wars” foi o primeiro em uma série de antologias que prometia justamente expandir o escopo da marca para além de sua saga principal. A ideia fora retirada do texto de abertura justamente de “Uma Nova Esperança”, o primeiríssimo filme da saga que mudou o cinema e a cultura pop em 1977.
Em vez de perfilar cavaleiros Jedi, criaturas exóticas ou o misticismo da Força, “Rogue One” foi assumidamente um filme de guerra, em que uma equipe relutante, liderada por Jyn Erso (Felicity Jones) precisa roubar do Império os planos de sua super estação espacial de combate, a Estrela da Morte. Seu segundo em comando na missão foi um capitão da Aliança Rebelde, o espião e assassino Cassian Andor.
Não vou falar aqui sobre o final trágico de “Rogue One” (ops…), mas é o contexto para situar “Andor”, que é ambientado anos antes dos eventos do filme. A tarefa de criar e produzir a série foi dada ao escritor e diretor Tony Gilroy. No fim, foi o que fez toda a diferença.
Gilroy não é um estranho ao universo de “Star Wars”. Ele, na verdade, fora convocado anos antes justamente para resolver problemas narrativos enfrentados pelo diretor Gareth Edwards em “Rogue One”.
Por fim, Gilroy reescreveu o terceiro ato, cortou cenas inteiras, remontou a ordem de acontecimentos e filmou o que talvez seja a melhor cena com Darth Vader de todos os tempos. Ao eliminar os elementos mais reconhecíveis em “Star Wars”, ele reencontrou o coração da saga.
“Andor” tem essa mesma pegada. É uma série de espionagem, um olhar sobre os movimentos políticos necessários para criar uma rebelião dentro de um regime autoritário. Sem fantasia, sem poderes sobrenaturais, sem grandes batalhas espaciais. Uma história que não tem medo de ir a fundo nos sacrifícios necessários para erguer-se contra o Império.
Em doze episódios, Tony Gilroy e o time excepcional que ele montou construiram a personalidade de Cassian Andor (Diego Luna, não menos que excepcional), de sua origem indígena aos motivos que o levaram a deixar de ser um ladrão calculista para se tornar alguém consciente de seu papel em erradicar o mal causado por uma ditadura militar.
Em vez de cavaleiros nobres, “Andor” é povoado por pessoas que não hesitam em puxar o gatilho em nome da causa. A começar por Luthen (o espetacular Stellan Skarsgård), um dos arquitetos da Aliança Rebelde que opera com a fachada de comerciante de antiguidades. Ou a senadora Mon Mothma (Geneviene O’Reilly), que aos poucos percebe o custo de acreditar – e financiar – uma rebelião, sem perder sua posição como senadora do Império.
De coadjuvantes de tirar o chapéu a atores de peso como Forrest Whtaker e Fiona Shaw, não existe personagem desperdiçado, não existe arco narrativo dispensável. Ao longo da série, “Andor” chacoalha o universo “Star Wars” com intriga, traição, tortura, sexo e morte – definitivamente é uma série mais madura e pouco indicada para crianças. Mesmo com a produção esmerada, que traz escopo e um certo sentimento de desolação e derrota à galáxia, o grande trunfo aqui é o texto. Cada linha, cada resolução, cada movimento de personagens é um novo assombro. Preste atenção no destino de Kino Loy (Andy Serkis, uma surpresa) e você vai entender.
A LucasFilm está em processo de mutação constante. Seu próximo filme, “Rogue Squadron”, com a diretora Patty Jenkins (“Mulher-Maravilha”), foi removido do cronograma. Damon Lindelof, Shawn Levy e Kevin Feige estariam trabalhando em filmes solo no universo “Star Wars”, mas não existe nenhum movimento. Taika Waititi, que este ano fez “Thor: Amor & Trovão”, supostamente será o nome por trás da próxima aventura cinematográfica da saga. Quando? Vai saber.
Enquanto isso a TV está pegando fogo. “Ahsoka” traz aventuras da Jedi criada para a animação “The Clone Wars”, que estreou em carne e osso na segunda temporada de “The Mandalorian”, defendida por Rosario Dawson. Hayden Christensen retorna como Darth Vader, com outros papeis nas mãos de Mary Elisabeth Winstead e Ray Stevenson. Estreia ano que vem
Também em 2023 “Skeleton Crew” chega ao streaming com Jude Law à frente. “The Acolyte”, ambientada um século antes dos eventos do filme “A Ameaça Fantasma”, começou a ser filmada mês passado. A terceira temporada de “The Mandalorian” já está com os pés na porta para estrear em fevereiro.
É curioso “Star Wars” florescer na TV quando pensamos que uma das inspirações para George Lucas criar “Star Wars” eram justamente os seriados que embalavam as matinês de crianças e adolescentes nos cinemas dos anos 1930 e 1940. A divisão em capítulos é perfeita para nos dar tempo de saborear as nuances de novos mundos e personagens, e prestar ainda mais atenção na história.
Como “Andor” mostra, “Star Wars” não precisa necessariamente do espetáculo visual para sobreviver. Um bom texto está em primeiríssimo lugar. Não é ao acaso que a série com Diego Luna é o melhor produto derivado da marca desde “O Império Contra-Ataca”. Bons personagens nos atraem e nos levam com eles em uma boa história.
O nível de excelência de “Star Wars” foi mais uma vez elevado. Manter a bola em jogo é o desafio. Tudo isso sem precisar de tolices como easter eggs ou fan service para agradar a uma parcela mais infantilizada dos devotos. Curiosamente, o que “Andor” tem, ao final de seu último episódio, é uma cena pós créditos. Acredite: é de arrepiar!