Liberdade sempre foi um conceito bastante subjetivo no princípio do século 19. As limitações tecnológicas; a instrução formal restrita à gente de posses que pudesse despender muito dinheiro por ela; as distâncias, ainda mais impositivas por causa de um e outro motivo, vencidas quase sempre apenas pelos mais afortunados ou por aqueles que têm na alma o gosto pela aventura, todos esses eram fatores que, misturados a uma certa condição genética, tornavam o isolamento um limite natural com que aquelas pessoas — e sobretudo aquelas mulheres — tinham de lidar. Publicado em 1816, o romance “Persuasão” (1816), marca o fim da trilogia iniciada com “Razão e Sensibilidade” (1811), com que a britânica Jane Austen dá início à saga em que discorre sobre o amor em oposição às premências mais básicas da vida; “Orgulho e Preconceito” (1813) segue nessa mesma direção, especulando acerca da honra de uma família outrora influente, mas em apuros de dinheiro, cuja única grande chance de mudar seu destino reside no casamento arranjado da filha mais velha e um homem rico, que aparentemente a deseja, mas que não consegue afastar a sombra da mãe superprotetora da donzela. “Persuasão” marca o fim da obra literária e da vida de Austen, que morre em 18 de julho de 1817, aos 42 anos, vítima do mal de Addison, uma doença autoimune a respeito da qual nada se sabia duzentos anos atrás. Resta inacabado “Sanditon”, em que Austen confirma a predileção por esquadrinhar as pequenezas da burguesia da Velha Inglaterra, algo que fez como ninguém.
A escritora foi uma das artistas que melhor retratou esse lado obscuro da sociedade em que viveu, dando origem a uma narrativa caudalosa, mordaz, uniforme em seu primor ao longo de três livros, levados a prelo em espaços muito bem definidos no tempo, aspecto que se toma como certeiro da produção de alguém que escrevia como respirava, com fluidez, organicamente, sorvendo as palavras e as ideias e fazendo com que seus leitores também acessassem esse lugar mágico que só a grande arte descortina ao gênero humano. O maior trunfo de Austen, contudo, foi ter conseguido ultrapassar supostas barreiras entre uma e outra manifestação artística e ir se desdobrando no transcurso dos anos, mantendo o interesse pelo livro ao passo que suas histórias ficavam indóceis à placidez material da literatura. Adaptado para o cinema pela primeira vez há quase trinta anos, em 2022 “Persuasão” torna à vida pelas mãos de Carrie Cracknell, que fez carreira no teatro e agora mostra excelência também na realização de filmes. É óbvia a interseção entre seu ofício de origem e o novo meio que abraça, a começar pela opção de fazer a protagonista falar diretamente à câmera, recurso usado à farta no teatro. A derrubada da quarta parede é, sem dúvida, um expediente que aproxima público e atores — talvez aproxime até demais —, mas Cracknell é sagaz ao empregá-lo quando mescla essas entradas individuais com longas passagens do texto profuso de Austen, roteirizado pela estreante Alice Victoria Winslow e o veterano Ron Bass. Mesmo se comparado à ótima versão de Roger Michell (1956-2021), levada à tela em 1995, a qualidade da releitura mais atual sobressai, com a ressalva de que, conscientemente ou não, Cracknell saúda “Persuasão” como um exemplo de modernidade, cujo arrojo da premissa — e o destemor da mente privilegiada de onde veio — não poderia ser mero adorno.
Dakota Johnson encarna uma Anne Elliot que quase salta do raiar do século retrasado para a contemporaneidade. A força da personagem e da produção mesma está, em grande medida, em seu apelo estético. Os figurinos de Marianne Agertoft, mormente aqueles com os quais veste a protagonista de Johnson, são precisamente essa carta de intenções para o arquétipo da mulher a frente de seu tempo, e passariam, com um ou outro ajuste pontual, por roupas prêt-à-porter de butiques hypadas da Londres dos nossos dias. Johnson defende sua personagem igualmente amparada por essas lufadas de frescor criativo — de Cracknell, de Agertoft, de Winslow —, e é esse mesmo o oxigênio de que esta versão para o clássico de Austen se abastece, sem nenhum prejuízo para a essência da trama original, que se diga. Subsiste a mulher madura (para os padrões de 1816, por óbvio), perdida, torturada pelas decisões nem certas nem erradas de um passado nem tão distante, mas remoto, que vence pelo próprio esforço, malgrado seja obrigada a conviver com a possibilidade de passar o resto de seus dias entornando garrafas de bom vinho na imensidão de um quarto em desabrido caos, sobre uma cama fria e mal-ajambrada, contando apenas com a lealdade do coelho de estimação. Até que o homem de que desfizera, e de quem segue enamorada passados oito anos, reaparece.
O malogro existencial de Anne em sua esfera mais particular, mais íntima, toma substância na figura do capitão Frederick Wentworth, e felizmente Cracknell não cede à patrulha do politicamente correto, sempre pronta a fazer justiça com as próprias mãos — ainda que isso implique reescrever a História e mesmo as histórias —, tampouco ao feminismo vulgar, e mantém a protagonista como o que de fato é: mulher forte da casca para fora, mas disposta a todo gênero de humilhação a fim de reaver o amor do homem que, a essa altura, não mais ama, venera. Cosmo Jarvis, por seu turno entende a grandeza do papel, e faz de Wentworth um homem rude, talhado pelos solavancos do mar proceloso, mas verdadeiramente nobre, cuja bondade interdita a menor referência a joguinhos de sedução que antevejam tolas vinganças, também porque o despontar do belo William Elliot no horizonte de Anne, o primo afastado e ambicioso de Henry Golding, pode provocar uma trindade de infelizes.
Romance como não se faz há muito tempo, “Persuasão”, o livro, encontra mais uma vez, boa acolhida nos braços seguros de Carrie Cracknell. Espantosamente desafetado para uma produção com esse teor, o filme é divertido sem ser ligeiro, sofisticado sem ser pedante, e muito persuasivo. Deliciosamente persuasivo.
Filme: Persuasão
Direção: Carrie Cracknell
Ano: 2022
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10