Tipos orientados pelo desejo de retaliação, que se atiram sem medo a uma jornada contra quem desestabilizou a harmonia do seu lar mediante um crime e maculou a honra de sua família com o sangue de um inocente nunca serão demais no cinema. A essa premissa inicial de “Ajuste de Contas” junta-se o tempo, variável contra a qual homem nenhum pode lutar, que avança, não espera, não volta, e talvez por isso mesmo, seja matéria de tanto valor, especialmente quando se percebe que boa parte da vida se foi para nunca mais e já não se pode mais dispor da boa vontade da natureza. Vinganças são sempre um excelente ponto de partida nas histórias desses homens ávidos por reencontrar seu próprio eixo, e Shawn Ku tira o máximo que pode de seu roteiro, escrito a quatro mãos com John Stuart Newman, quanto a deixar a clara a intenção de seu protagonista em impingir a quem lhe roubou qualquer chance de um futuro sereno o mesmo castigo, uma vez que não pode seguir a vida de onde fora obrigado a parar. A onipresença do caos na vida de Frank Carver, o anti-herói interpretado com convicção por Nicolas Cage, já dura vinte anos e atira-lhe a extensão de seu fracasso todo dia, até que a oportunidade de tentar outra vez de fato se estabelece. O mundo continuou a girar, como prova Joey, de Noah Le Gros, já não mais uma criança, e ao passo que sente que refazer o caminho junto ao filho é a grande e inesperada bênção de sua vida desditosa, levar seu plano de desforra termo é um imperativo moral.
Enquanto alguém é espancado com um bastão de beisebol — o grande MacGuffin da narrativa —, a trilha de John Kaefer preenche o espaço com a ária de uma ópera de puro lamento com a vida e suas trapaças. “Ajuste de Contas” principia com esse flashback de duas décadas, sem explicar nada, deixando que o espectador ligue os pontos por si só e fazendo com que se caia nas muitas armadilhas do texto de Ku e Newman, cheio de minudências às quais se tem de prestar toda a atenção a fim de que o todo faça sentido. Frank observa a cena, e um corte seco o leva à enfermaria de um presídio, onde a médica que o atende receita-lhe um sonífero poderoso na tentativa de arrefecer a insônia que o escraviza desde que foi preso. A personagem de Linda Ko explica a Frank que a privação de sono, quando tão grave, causa delírios tão arrebatadores que impossibilitam o paciente de distinguir a realidade daquilo que existe apenas em suas fantasias mais obscuras, e esse é outro dos tantos elementos que fazem toda a diferença, mormente numa certa altura do segundo ato, quando a genuína dimensão da vida de companheirismo e afeto o mais comovente de que passa a usufruir com Joey. Le Gros, cirúrgico ao equalizar o terno e o brejeiro desse garoto visivelmente desajustado, presta-se até a reinstruir o pai nos ardis da sedução, quando Simone, empresta alguma leveza ao dia a dia de Frank. A distinção de Karolina Wydra engana, e Simone, nome de guerra da prostituta Jennifer, faz questão de esclarecer que seus elogios à performance sexual do antimocinho de Cage devem ser pagos e os sorrisos de derreter geleiras na lua voltam para o limbo de uma alma igualmente sombria caso não ganhe a devida recompensa.
Joey e Simone são as assombrações que Frank alimenta com todo o gosto, até que se vê, em verdade, em condições de acertar os ponteiros com o que a vida fez dele na sequência em que reencontra o homem que o lançou a mais inominável das tragédias. Daí em diante, “Ajuste de Contas” assume de vez o flerte para o sobrenatural, sem nada que lembre a abertura pujante de um sujeito furioso em busca de seus cacos.
Filme: Ajuste de Contas
Direção: Shawn Ku
Ano: 2019
Gêneros: Ação/Suspense
Nota: 8/10