O cenário audiovisual brasileiro é acompanhado, até hoje, de inúmeros estigmas equivocados – como, por exemplo, a crença infundada de que o nosso país apenas produz comédias pastelão. É claro que sabemos que isso não é mentira, considerado o número considerável de ótimos dramas que caíram no gosto do público e da crítica. Mas, dentro desse espectro, é necessário comentar que ainda existe um desfalque significativo em vários subgêneros, como o da ficção científica. Nos últimos anos, tivemos incursões como ‘3%’ e ‘Medida Provisória’, que começaram a quebrar as barreiras criativas, mas não foi até 2023 que adentraríamos um cosmos novo com o aguardado lançamento de ‘B.A. – O Futuro Está Morto’, baseado livremente nos quadrinhos do icônico Rafael Coutinho.
A trama é ambientada em um futuro distópico em que a Amazônia se transformou em um grande polo industrial para atender aos interesses de uma elite movida pelo capitalismo predatório. Dentro desse universo distorcido, existe uma comunidade de adolescentes com dons sobre-humanos que são conhecidos como O Beijo Adolescente – e que enfrentam as forças fascistas que estão determinadas a destruí-los e a exigir que eles vivam de acordo com as normas impostas. E, quando um assassinato de um dos membros do grupo ocorre, eles percebem que precisam agir se quiserem ter alguma chance de sobreviver.
Considerando o peso e o aclame das HQs originais, não poderíamos deixar de ficar com um pé atrás com a releitura seriada (afinal, a potente obra assinada por Coutinho trata de inúmeros temas de extrema importância e de discussão imprescindível, ainda mais na atualidade); todavia, nossas expectativas foram superadas através das habilidosas mãos de Peppe Siffredi e Mariana Youssef, que entraram como criadores do show, e do showrunner e produtor Caio Gullane. Com o lançamento dos três primeiros episódios da temporada, é perceptível como ‘B.A.’ tem chances consideráveis de emergir como um divisor de águas, pavimentando um trajeto que tem muito a nos contar e que mistura drama, suspense, romance e comédia em uma vibrante jornada de autodescoberta e de representatividade.
É notável como Siffredi e Youssef se apropriam de diversas referências estéticas para dar vida a esse mundo: de um lado, as incursões à la ‘1984’ e ‘Admirável Mundo Novo’ despontam em construções sci-fi que nos remetem aos arquétipos do “Grande Irmão”, do emparelhamento do Estado e do corpo policial, do autoritarismo e da segregação social; de outro, a imagética em cores contrastantes que oscilam entre a multiplicidade de tons neons e pastéis dos personagens mais novos e da angústia monocromática e letárgica dos adultos – cuja falta de prospecto é refletida em uma desesperança aflitiva. Mais do que isso, temos um embate explosivo entre o hedonismo e a obediência exagerada que urge das telas e nos arrasta para um vórtice de eventos envolventes e derradeiros.
Isso não seria possível sem um elenco de peso, cuja aplaudível química é de tirar o fôlego. Temos, por exemplo, Benjamin e Giulia Del Bel interpretando Ariel e LinLin, dois dos protagonistas que nutrem de personalidades tão distintas que nos abraçam em uma relação em crescendo espetacular – e não podemos deixar de mencionar a atuação impecável dessa dupla que rouba os holofotes a qualquer momento, sejam juntos, sejam separados. Pedro Goifman também se rende a uma performance espetacular como Tomás, um dos membros mais velhos do B.A. e que passa por um processo de crise e decadência ao estar se aproximando da maioridade e entender que, ao entrar na fase adulta, perderá seus dons e terá um destino semelhante aos mais velhos – consagrando-se como um dos personagens mais desenvolvidos e contando com um trabalho invejável que é marcado por trejeitos únicos e uma naturalidade sedutora e contraditória (no melhor sentido do termo).
Shaolin, encarnando o líder do grupo, Palhaço, oferece uma camada diferentes dos outros jovens – promovendo um encontro entre a racionalidade do amadurecimento com a ingenuidade da adolescência em uma caracterização emérita e muito bem-vinda; Milhem Cortaz, recém-saído do ótimo projeto ‘Os Outros’, demonstra sua versatilidade performática como Ed, pai de Ariel; e Ingrid Gaigher, interpretando a irmã mais velha de Tomás, insurge como a ponte entre os jovens e os adultos em uma desconstrução arquetípica que é necessária para uma série desse calibre.
É claro que alguns deslizes despontam, seja com a curtíssima duração dos episódios ou certas falhas de ritmo nas múltiplas subtramas do roteiro – mas os pontos fortes ofuscam essas falhas e nos abraçam em uma reflexão que tangencia a melancolia: para além das conversas sobre identidade, sexualidade e gênero, há uma emblemática celebração sobre o amor-livre, o ambientalismo, as relações de poder, a problemática do panóptico político e da submissão social, pincelando essa quantidade exorbitante de temáticas com referências filosóficas transmutadas com uma leveza perturbadora e uma despreocupação enervante que apenas aumentam nosso interesse e nos fazem devorar a produção de uma vez só.
‘B.A. – O Futuro Está Morto’ é uma sólida produção que demonstra que a arte nacional ainda tem muito a contar e merece mais atenção do que realmente tem. Se apenas os três primeiros episódios foram fortes o suficiente para nos engatar numa aventura convidativa, mal podemos ver o que as próximas semanas nos aguardam.