Road movies têm o condão de transportar mais do que personagens e atores: levam também a história e o público ao longo das descobertas que um bom filme propicia. Com “Ella e John”, o diretor Paolo Virzì, do excelente “Capital Humano” (2013), apresenta uma história comovente, engraçada, analítica, melancólica e, sobretudo, bem contada, graças ao casal de protagonistas, veteranos com uma bagagem digna de registro.
Uma mulher prática, sem muito requinte, num casamento de séculos com um intelectual que começa a acusar o flagelo do Alzheimer é a alma de “The Leisure Seeker” (algo como “à procura de lazer”, em tradução livre), romance de Michael Zadoorian publicado em 2009, e no filme de Virzì, essa mulher admirável, continua a demonstrar que não teme a morte — e nem a vida —, até que entrega os pontos.
Enquanto isso, porém, Ella Spencer planeja a viagem dos sonhos com o marido, John, nada muito pretensioso e mesmo um tanto improvisado, hora de um acerto de contas de meio século, brando, mas definitivo, só entre os dois e suas lembranças, suas mágoas, seus receios e alguma fantasia que porventura tenham. O roteiro do diretor e outros três colaboradores põe seus personagens-título num Winnebago 1975 creme com listras verdes, o caçador de diversão do livro de Zadoorian, e os despacha de Wellesley, Massachusetts, rumo ao sul dos Estados Unidos para a visita a um amigo ilustre de John — ou assim ele acredita —, tapeando a audiência quanto à ventura da empreitada até o derradeiro lance.
Quando o filme começa, Ella e John já estão na estrada, como se fossem dois adolescentes que se recusam a dar satisfações de seus desvarios. Na verdade, eles bem poderiam sumir mesmo, desde que ao menos avisassem, e em sendo assim, Will, o filho o mais novo, tem todo o direito de se desesperar. Ele procura pelos pais, abre a casa, não encontra ninguém, volta ao jardim, e na calçada, Lillian, a vizinha interpretada por Dana Ivey, já tem o relatório na ponta da língua. O carro de passeio está na garagem, mas o Winnebago, não, e a partir desse instante, ele não consegue pensar em outra coisa se não no pior e em estipular uma desculpa para que os pais regressem. Ele telefona para Jane, papel de Janel Moloney, e a filha mais velha também chega; juntos, eles ligam para a mãe quando ela, finalmente, ativa o celular.
Ella os tranquiliza, mas sem muita brecha para sermões e deixando claro que nada poderá dissuadi-la do que poder-se-ia classificar como uma segunda lua de mel mui tardia, não fosse a cena num diner, no meio da jornada, em que se afasta e deixa escorrer uma lágrima furtiva. Aos poucos, Virzì sugere que Ella padece de uma doença terminal que a consome com perversa regularidade, obrigando-a a misturar doses cavalares de oxicodona e uísque para suportar a dor. Volta à mesa e encontra John discorrendo como nos bons tempos de professor de literatura em língua inglesa sobre a poesia em prosa de Ernest Hemingway (1899-1961), cuja casa-memorial em Key West, Flórida, esperam conhecer. Chantal, a meiga garçonete que lhe serve o tal desejado hambúrguer, personagem de Gabriella Cila, derrete-se. Agora Ella está devidamente anestesiada.
O contraste entre os dois é o sal do filme, e por tão autêntico, por tão espontâneo, é garantia de riso frouxo para o espectador. Helen Mirren é uma atriz formidável, conhecida do grande público graças à sua interpretação vívida (e humana) da gélida Elizabeth II (1926-2022) em “A Rainha” (2006), mas Sutherland é quem se apossa mesmo da trama. O ator está completamente à vontade na pele de John.
A sintonia que demonstra com o personagem, a quem não dá refresco e mantém em rédea curta, nunca se permitindo resvalar em caricaturas grosseiras — ainda que se exceda um pouco nas diversas gags do texto, especialmente as tratam da doença que aos poucos mina toda a autonomia vigorosa de John — é tocante. Virzì chega a abordar (tibiamente, até porque não era esse o seu propósito fundamental) o descaso do sistema público de saúde americano, famoso por sua péssima qualidade, para com os idosos. John é um simpatizante do finado Donald Trump, o que se configura um escorregão daqueles do roteiro quanto à coerência, amenizado, por exemplo, numa cena em que o professor recita de cor todo um parágrafo de “O Velho e o Mar” (1952). A gente vai direto para o mar de Cuba com ele.
No doído encerramento, Ella toma a decisão que ninguém pode julgar, mas desabridamente monstruosa (“ela teria premeditado tudo?”, pergunta meu coração de criança), e não se sabe mais deles. A trilha, bem-cuidada, faz menção à vida em liberdade ao recordar Janis Joplin (1943-1970) em “Me and Bobby McGee” (1970), romântica na medida, ou flagrantemente melosa e algo trágica na voz de Thelma Houston em “Don’t Leave Me This Way” (1976). “Ella e John” é mais uma prova estimulante de que envelhecer e encaminhar-se para o fim inescapável é sempre um drama. E que não é nada doce naufragar nesses mares.
Filme: Ella e John
Direção: Paolo Virzì
Ano: 2017
Gêneros: Comédia/Aventura
Nota: 9/10