A nova edição do reality show Big Brother Brasil levantou uma discussão sobre capacitismo – uma forma de preconceito que coloca as pessoas com deficiência em uma posição de inferioridade.
Durante a primeira prova do líder do programa da Globo, que começou na segunda-feira (9), o participante Maycon fez comentários considerados ofensivos sobre o atleta paralímpico Vinícius Rodrigues.
O cozinheiro escolar se referiu à perna amputada de Vinicius como “cotoco” e “cotinho”, expressões consideradas pejorativas para se referir a membros amputados.
Maycon também perguntou ao velocista se poderia “apelidar” a prótese dele e sugeriu dar o nome de “cotinho”
Vinicius riu das falas do colega, mas segundo a superintendente de Práticas Assistenciais da AACD, Alice Rosa Ramos, as expressões podem ser entendidas como ofensivas e capacitistas por outras pessoas com deficiência.
“Algumas pessoas podem considerar comentários como esse parte de uma brincadeira e não se ofender, mas outras podem rir apenas para não se sentir excluídas”, diz.
“A forma mais respeitosa é perguntar para a pessoa com deficiência se ela se refere à prótese ou à deficiência de uma forma diferente – e usar o mesmo termo que ela.”
Daniel Dias, atleta paralímpico de natação e embaixador da Ottobock, fabricante das próteses usadas por Vinícius no programa, também classificou os comentários como capacitistas em um vídeo publicado em suas redes sociais.
“Essa atitude que aconteceu com o Vinícius no programa acontece no dia a dia da nossa vida”, disse Dias ao portal UOL.
“Se fosse com qualquer outra pessoa, ele não falaria daquela maneira. O que nós queremos é que as pessoas nos olhem e não para nossa deficiência. Antes da deficiência, existe a pessoa.”
Para conscientizar e sugerir que sejam abolidas do cotidiano, o TST (Tribunal Superior do Trabalho) e o Ministério da Cidadania desenvolveram miniguias com expressões e atitudes consideradas capacitistas.
A BBC News Brasil reuniu algumas delas a seguir.
1. Tratar pessoas com deficiência de forma infantilizada
Muitas pessoas com deficiência apontam que são constantemente infantilizadas, algo que deve ser evitado ao máximo.
Usar linguagem condescendente e paternalista em conversas com pessoas com deficiência é capacitismo.
Segundo especialistas, ao agir dessa maneira, pais, cuidadores e outras pessoas podem acreditar que estão sendo gentis ou benevolentes quando, na verdade, estão impedindo a pessoa com deficiência de exercer seu direito à independência.
Além disso, deficiência não é doença, e uma pessoa com deficiência não tem necessariamente uma saúde frágil.
Assumir isso ou tratar a pessoa com deficiência como um doente também é uma forma de preconceito.
O Ministério da Cidadania também desaconselha, por exemplo, repetir muitas vezes seguidas uma mesma coisa para pessoas com deficiência, como se elas não estivessem entendendo, ou falar alto com uma pessoa cega (a não ser que ela tenha deficiência auditiva também).
Há quem aponte também a existência de mitos e tabus sobre sexo e pessoas com deficiência.
A atriz Mared Jarman, que ficou cega do olho direito após ser diagnosticada com a doença de Stargardt (uma condição degenerativa associada à perda progressiva de visão) aos 10 anos, escreveu a comédia How This Blind Girl (“Como essa garota cega”, em tradução direta), da BBC, por estar cansada de ver personagens com deficiência retratados como assexuados ou fetichizados.
“É simplesmente ridículo acharem que não temos os mesmos instintos e motivação que qualquer outra pessoa”, disse à BBC.
2. Considerar as conquistas da pessoa como um ‘milagre’
Dizer que a pessoa com deficiência “é uma guerreira”, “um exemplo de superação” ou que “faz milagres” pode ser considerado ofensivo.
Segundo o TST, o capacitismo se reveste muitas vezes de um sentimento ou de um comportamento de “simpatia” pelas pessoas com deficiência, mas que sustenta uma ideia de subordinação social e econômica.
“Entenda a deficiência como uma possibilidade de vida. Desvincule-a da tragédia”, diz o tribunal.
Segundo Ramos, é sempre bom dar crédito pelo objetivo alcançado, “mas não assumindo que, por conta da deficiência, aquela pessoa não pode fazer algo”.
3. Exaltar a deficiência como justificativa para um tratamento especial
Tratar a pessoa com deficiência de forma diferente das pessoas sem deficiência pode ser uma forma de exclusão.
A deficiência não significa que a pessoa seja menos inteligente ou menos capaz do que qualquer outra. Alguém também não é inferior só porque tem deficiência.
Segundo a cartilha do Ministério da Cidadania, a pessoa com deficiência não tem de servir de exemplo para outras pessoas.
“Claro, você pode admirá-las, mas não as transforme na sua motivação”, recomenda a pasta.
“Se é para ser exemplo, que seja pelas atitudes que tem, não é mesmo? Mas não por ter uma deficiência.”
Isso vale também para o ambiente de trabalho: a deficiência não torna a pessoa menos profissional que as outras.
Não existe uma atividade específica que seja melhor ou pior para a pessoa com deficiência.
“Com as adaptações necessárias no ambiente de trabalho, nem o céu é o limite!”, diz a cartilha.
Ramos ressalta que, em ambientes escolares ou de trabalho, pode ser necessário fazer ajustes para garantir a inclusão.
Mas isso não significa que aquela pessoa com deficiência seja menos capaz.
4. Oferecer ajuda sem que tenha sido solicitada
Segundo a cartilha do TST, este comportamento deve ser evitado.
Qualquer pessoa precisa de apoio. Por isso, é importante não confundir capacitismo com necessidade de cuidado e auxílio.
O Ministério da Cidadania explica que, no caso de uma pessoa com deficiência que está mostrando dificuldades para atravessar a rua, por exemplo, uma ajuda até pode ser oferecida, mas sem insistência.
“Se a pessoa com deficiência precisar do seu apoio, ela irá pedir (ou a cuidadora dela, se for o caso)”, diz a pasta.
“A pessoa com deficiência não é orgulhosa nem metida se recusar ser ajudada quando você oferecer apoio. Às vezes, ela não precisa mesmo de ajuda.”
5. Deficiente, portador de necessidade especial ou portador de deficiência?
A orientação é usar o termo “pessoa com deficiência (PCD)” e nunca expressões como “portador de necessidade especial”, “portador de deficiência” ou “deficiente”.
O termo “pessoa com deficiência” foi definido pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito das Pessoas com Deficiência, aprovada em 2006 pela Assembleia Geral da ONU e ratificado pelo Brasil.
Essa convenção diz que a deficiência é resultante da combinação entre dois fatores: os impedimentos clínicos que estão nas pessoas (que podem ser físicos, intelectuais, sensoriais etc) e as barreiras que estão ao seu redor (na arquitetura, nos meios de transporte, na comunicação e, acima de tudo, em nossa atitude).
Segundo especialistas, o cuidado com as palavras não é preciosismo, mas faz parte da busca por uma convivência mais civilizada.
6. Os termos que devem ser abolidos do vocabulário
“Retardado”, “mongol”, “demente”, “imbecil”.
Esses termos também são totalmente inadequados e ofensivos para se referir a pessoas com deficiência intelectual.
A discriminação é proibida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/ 2015) e pela própria Constituição Federal.
Também não devem ser usados para pessoas sem deficiências, já que existe um histórico de preconceito associado a essas palavras.
7. ‘Deu mancada’
Algumas expressões que muitas pessoas usam no dia a dia também são consideradas fruto de preconceito e devem ser banidas do vocabulário.
A expressão “deu mancada”, por exemplo, faz referência a pessoas que têm assimetria na marcha.
Ao associar o ato de mancar com o de cometer erros ou fazer besteira, o termo é considerado capacitista e ofensivo.
8. ‘Não temos braço/perna para isso’
Dizer que “não possui braço” para realizar uma tarefa é considerada uma forma de insinuar que uma pessoa que não possui um braço não poderia fazer aquele trabalho ou cumprir a obrigação com qualidade.
“Quem disse que uma pessoa amputada, que não tem um braço ou uma perna, não pode fazer aquela atividade”, diz a superintendente da AACD.
9. ‘Fingir demência’
A demência é um termo usado para descrever um conjunto de sintomas que afetam a função cerebral, como problemas de memória, raciocínio, linguagem e comportamento.
Portanto, não é algo que se escolhe ou se finge ter e nem deve ser associado ao comportamento negativo de alguém.
10. ‘Deu uma de João sem braço’
Não ter um braço é uma condição física, não comportamental.
Não ter um braço, portanto, não significa que a pessoa é preguiçosa, menos disposta a ajudar os outros ou apta a assumir responsabilidades.
“Usar essa expressão é dizer que aquela pessoa que não tem um braço está usando isso como desculpa para não fazer alguma atividade”, explica Ramos.
As boas práticas
O Ministério da Cidadania lista algumas dicas práticas de bons comportamentos, como:
- não distrair cães-guia;
- não estacionar na vaga ou usar o banheiro reservado para pessoas com deficiência;
- não usar uma cadeira de rodas para pendurar coisas ou se escorar (a não ser que você tenha permissão do dono ou da dona).
“Outras dicas: só empurre a cadeira de rodas de alguém se a pessoa pedir. E lembre-se que a cadeira vai onde a cadeirante precisa ir. Simples assim”, diz a cartilha da pasta.
Ficar sentado para atender ou conversar com alguém que está em uma cadeira de rodas é também uma boa prática, para que a pessoa que está na cadeira não precise ficar olhando para cima durante muito tempo.
Mas, de forma geral, a orientação é sempre respeitar a diversidade humana e compreender as pessoas em sua totalidade.
“A deficiência é apenas uma de suas características”, diz a cartilha do TST.
Outras dicas do tribunal são sempre respeitar a lei e procurar fazer a sua parte para garantir a acessibilidade: “Valorize e conviva com as diferenças.”