Crítica | Livre – Zonatti Apps

Crítica | Livre

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O road movie é um subgênero cinematográfico que focaliza suas narrativas em jornadas pelo mundo, seja pelas estradas ou pela natureza, abordando o tema do deslocamento. É interessante notar que esse subgênero possui uma tendência bem marcante, não apenas em seu estilo formal, mas também na força emocional que carrega. Historicamente, o road movie ganhou popularidade nas décadas de 1950 e 1960, refletindo as mudanças sociais e culturais da época, especialmente nos Estados Unidos. O cinema é um reflexo de seu tempo, e os road movies surgem em um período pós-guerra, quando toda uma sociedade estava fragilizada, quebrada e melancólica, tentando compreender seu lugar no mundo. Diante disso, com o advento da contracultura, da luta anti-guerra e do espírito de liberdade associado à busca por novas experiências, os road movies tornaram-se um veículo expressivo para examinar temas como autodescoberta, liberdade individual e a busca pelo significado da vida. Explorando profundamente os elementos característicos do gênero road movie, surge Livre, um filme inspirado no best-seller homônimo. A trama mergulha na história verídica de Cheryl Strayed (Reese Witherspoon), renomada romancista norte-americana, que decide embarcar em uma jornada épica marcada por coragem, superação e autodescoberta. Impulsionada por tragédias pessoais que abalaram sua vida, Cheryl busca redenção e significado ao enfrentar desafios físicos e emocionais enquanto percorre uma jornada transformadora.

Narrativamente, os road movies frequentemente seguem um padrão onde os personagens principais embarcam em uma viagem física que também simboliza uma jornada emocional ou espiritual, e para Cheryl não seria diferente. Ela estava completamente destruída após a morte de sua mãe (Laura Dern), que significava tudo para ela: amor, segurança, vida. Assim, na tentativa de autodefesa, Cheryl procurou refúgios e lugares que pudessem abafar sua dor. Cheryl queria se entorpecer para esquecer; fazia de tudo na vã tentativa de não pensar no passado, nas memórias, na mãe. Viver sem ela não parecia possível, uma angústia incomensurável. Cheryl se afastou do mundo, da esperança, daqueles poucos que restaram em sua vida.

É bastante comum que os road movies sejam formalmente mais realistas e naturalistas, ou seja, que explorem a imagem de maneira mais crua e sem adornos, seja através de um olhar mais contemplativo dos planos aproveitando a geografia ou na melancolia da experiência daquele personagem em processo de descoberta. Os diretores buscam capturar a autenticidade das estradas, cidades pequenas e vastos cenários naturais, optando por uma cinematografia que ressalte a beleza bruta e, por vezes, árida desses lugares. Wendy e Lucy de Kelly Reichardt é o exemplo perfeito desse cinema de viagem mais naturalista, um filme que explora o espaço como ele é, quase ou completamente sem trilha sonora, mergulhando na própria ideia de vazio diante da imensidão. No entanto, Livre apresenta-se como um contraponto ao realismo naturalista de Wendy e Lucy e de grande parte dos road movies. Na verdade, Livre parece seguir uma direção muito mais sensorial e intimista do que realista; o filme não apenas se utiliza dos espaços selvagens para simbolizar a jornada interna, mas também da liberdade formal para atingir tal propósito.

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Jean-Marc Vallée imerge o espectador na mente de Cheryl; ouvimos seus pensamentos, mas, acima de tudo, somos capazes de testemunhar sua transformação emocional. Cheryl projeta seu inconsciente para nós, tornamo-nos testemunhas de sua penosa e dolorida vida, sendo arrastados pela imagem, percebendo o medo, a rebeldia e a coragem necessária para enfrentar o desafio. O mais interessante é que Jean-Marc faz questão de nos fazer experimentar tudo isso, desenvolvendo um trabalho visual altamente sensorial, seja na construção da trilha sonora ou mesmo na sugestão de simbolismos, como a raposa ou as memórias de Cheryl. Ainda que a protagonista se encontrasse em uma jornada, igualmente nós, através de sua psique, nos vemos envolvidos nesse percurso.

Livre transforma o espectador em um viajante, um peregrino por uma mente marcada pelo tempo e pelas memórias. O filme induz o espectador a se espelhar na coragem e no desejo de mudança de Cheryl, incitando-nos a ansiar pela transformação e pela busca da cura de nossas próprias dores e traumas. Ao nos tornar parte da narrativa, permitindo-nos adentrar na mente de Cheryl, Livre acaba por nos transformar também. Não que o cinema naturalista não seja capaz disso, mas quando experimentamos de forma tão direta a vida do outro, torna-se mais fácil nos colocarmos no lugar ou até mesmo compararmos com nossa própria jornada. Livre destaca-se não apenas como uma narrativa emocionante, mas também como um retrato íntimo das complexidades humanas, explorando os caminhos tortuosos que levam à cura e à renovação.

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