A formatura pode ser um dos momentos mais marcantes da vida de uma pessoa, mas ela também pode se tornar constrangedora e desconfortável para pessoas negras de cabelos crespos e cacheados ou de tranças na hora de usar o capelo. O chapéu preto com a tampa quadrada, tradicional nos trajes da cerimônia, não se adapta para os diversos cabelos da maioria da população brasileira.
Ana Carolina dos Santos, 30, não conseguiu utilizá-lo no dia da sua colação de grau do curso de bioquímica, em 2015. “Foi um dia muito feliz para mim, mas eu não me senti completa”, diz.
Desde quando soube da formatura, Santos ficou pensando em como faria para o capelo se encaixar na sua cabeça. Ela utilizava tranças e não se enxergava sem penteado, pois tinha vergonha da textura natural do seu cabelo. No dia, ocorreu o que já previa: o capelo não coube.
“Me ocorreu uma situação de constrangimento”, diz. A mãe a tranquilizou e deu um jeito. “Em dois minutos, ela achou um grampo, colocou um só para eu tirar foto e o capelo ficou quase na metade do meu rosto.” Esse foi o único momento em que usou o acessório.
Quase dez anos depois, passada a frustração, Santos reviveu esse momento, mas desta vez o capelo se encaixou perfeitamente no seu cabelo volumoso e sem trança. Ela fez parte da campanha #RespeitaMeuCapelo, da Vult com a marca Dendezeiro. Foram desenhados quatro modelos diferentes do item para atender a diferentes tipos de cabelos.
“Quando a gente entende o peso representativo do capelo, que aquilo ali não funciona para gente, diz que não pertencemos àquele lugar”, afirma Igor Hermes, diretor de arte da GUT, agência que desenvolveu o projeto.
A questão dos capelos pode ir além do encaixe em cabelos afros, passando também pela cor da vestimenta tradicional de formatura. Recentemente, Cynthia Luiza Ribeiro do Amaral se formou na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) usando uma beca branca devido o período religioso pelo qual a estudante passava no momento da cerimônia.
“A pessoa é construída através de vários aspectos: social, cultural, regional e religioso. Então, como é que a gente pensa também no design que respeite a identidade cultural daquela pessoa, independentemente de ela ser negra ou não?”, diz Pedro Batalha, CEO e diretor criativo da Dendezeirio.
Um dos modelos do capelo criado, o qual Santos aparece na campanha, tem uma abertura circular no topo, adaptado também para quem usa turbante, já outro possui uma estrutura para fixação. Há também um modelo com pentes garfos e um com durag —dois símbolos estéticos e políticos para a população negra, que dá volume e protege penteados respectivamente.
“A gente parou para pensar que tipos de cabelos eram esses que a gente via no nosso dia a dia e que designers a gente podia criar para fazer com que esses capelos abraçassem o máximo de penteados”, diz Hisan Silva, CEO e diretor criativo da Dendezeiro.
Um dos capelos foi parar na passarela da última edição da São Paulo Fashion Week, no desfile da marca baiana. “É um produto que traz de volta a autoestima, que empodera as pessoas”, diz Silva. “É potente falar sobre moda no Brasil, que é uma ferramenta de emancipação também.”
Gabi di Abade, 17, também posou para campanha. A estudante se forma neste ano no técnico de administração e vai usar o chapéu com pente garfo. “Agora eu vou poder realmente usar a minha coroa e ainda o capelo junto”, diz. “Eu carrego toda a minha ancestralidade e faço questão de mostrar”, afirma ela.
A falta de adaptação em diversos tipos de cabelo não ocorre apenas com o capelo. Pessoas negras têm dificuldade em encontrar touca de natação ou cirúrgica, por exemplo. Ana Carolina dos Santos é embriologista e compra a própria touca com um tamanho maior para trabalhar no laboratório.
Pensando em situações como essa, Maurício Delfino e sua esposa Michele Eduardo fundaram a Da Minha Cor, em 2016, marca que vende itens adaptados para a comunidade negra.
“Cresci em um ambiente em que as mulheres da minha família não tinham produtos para elas”, diz Delfino. A marca atende principalmente mulheres com cabelos afros volumosos, tendo a touca de natação como o carro chefe.
Desde 2021 eles criaram um capelo que se encaixa em cabelos com volume. A inspiração surgiu a partir de uma notícia vista nesta Folha, daquele ano, em que dizia que mulheres negras eram o maior grupo nas universidades públicas do país. Ele e a esposa compraram um capelo tradicional e fizeram testes para adaptar à realidade de pessoas com cabelo cacheado, até chegar ao modelo vendido hoje, que possui um arco em sua base.
Foi esse capelo que Raíssa Sayane, 18, usou na sua formatura do ensino médio, após passar por uma experiência ruim na colação de grau do ensino fundamental. “Todos usaram capelo menos eu porque meu cabelo era muito cheio”, diz. “Coloquei na cabeça que formatura não era um lugar para mim porque não tinha como me formar com o meu tipo de cabelo.”
Próximo à formatura do ensino médio, ela apresentou o capelo da Da Minha Cor à diretoria da escola, pedindo para que ela tivesse um desse. Quando foi tirar as fotos de formanda, sua demanda não havia sido atendida e mais uma vez o capelo não coube no seu cabelo.
Sayane postou um vídeo reclamando sobre o episódio nas suas redes sociais, e recebeu um capelo, assim como outra amiga cacheada. “A gente conseguiu”, diz. “Eu e ela deixamos o capelo na escola porque assim outras meninas jovens, pretas com cabelo bem cheio, de tranças, conseguiriam usar o capelo adaptado e não precisariam passar por esse constrangimento.”
As instituições Zumbi dos Palmares e Universidade Federal do Sul da Bahia vão receber mil unidades de capelos da campanha para formaturas no segundo semestre. Além disso, os moldes dos chapéus estão disponíveis no site da marca para que mais pessoas possam replicar os modelos. “É um pontapé para que as pessoas entendam que elas podem fazer um pouco mais se elas quiserem também”, diz Batalha, da Dendezeiro.
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