Meio milhar de pessoas disputou sexta e sábado (8 e 9) as três salas do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ipub-UFRJ), na Praia Vermelha, destinadas ao 2º Congresso Brasileiro sobre Psicodélicos (veja vídeos aqui), reunião da Associação Psicodélica do Brasil (APB) com patrocínio do Conselho Federal de Psicologia.
O lema do evento foi “Integração, Acesso e Regulação”. No centro de gravidade dos debates esteve o miolo da frase, acesso, sintetizado na expressão “psicodélicos no SUS”, provavelmente a locução mais pronunciada nos dois dias.
Em realidade, já estão no SUS psicodélicos como ayahuasca (daime), psilocibina (cogumelos), MDMA (ecstasy), e 5-MeO-DMT (bufo), mas não como tratamento, pois afinal permanecem proibidos. Uma exceção é a cetamina (quetamina), anestésico dissociativo regulamentado como antidepressivo que alguns serviços públicos oferecem para depressão.
A ingestão desses compostos em geral ocorre em cerimônias religiosas e xamânicas, ou em baladas e outros contextos que não oferecem a segurança e o apoio necessários. Se fosse no SUS, precisaria de profissionais treinados.
Mas como capacitá-los na administração de drogas ainda não regulamentadas?, questionou a psicóloga Paula Siqueira. “Meu sonho? Não é psicodélico no SUS, mas um Brasil antirracismo”, ponderou. “É uma ferramenta para tratar sintomas”, que deixam intocadas as raízes do sofrimento.
O psiquiatra Luís Fernando Tófoli, da Unicamp, estendeu a crítica de Siqueira ao modelo biomédico por favorecer a integração terapêutica individual e menosprezar o papel das comunidades, como ocorre no uso tradicional da ayahuasca, cogumelos e peiote na América Latina, muito antes da medicina ocidental. “Por que já não fazer o processo com o coletivo?”
As substâncias alteradoras de consciência chegam aos CAPS e ambulatórios menos por seu potencial de cura e mais pelo desamparo de usuários. Vários deles são largados às voltas com a dificuldade de integrar, sozinhos, as experiências psicodélicas num processo terapêutico.
Não raro, pessoas que confiaram em (neo)xamãs ou padrinhos do Santo Daime despreparados para ajudá-las a fazer sentido das visões e traumas que afloram sob efeito das substâncias. Houve vários relatos do tipo por psicólogas e médicas, em maioria nas plateias e algumas mesas do congresso.
Por essas e outras, Fernando Beserra, da APB, assinalou que a questão dos psicodélicos é política, não só de pesquisa clínica. A biomedicina arrisca abrir caminho para tratamentos caros, acessíveis só para a elite, diz. “Somos vozes da resistência, queremos garantir os direitos de pessoas que usam drogas.”
Com efeito, são proibitivas as opções disponíveis para cuidar de pessoas com transtornos psíquicos, inclusive dependência. Tratamentos com ibogaína, derivado de uma planta africana que a Anvisa permite importar caso a caso, podem ser obtidos em clínicas paulistas, por exemplo, por alguns milhares de reais.
Bruno Rasmussen Chaves já administrou ibogaína para mais de 2.000 pessoas em Ourinhos (SP), com internação por 24 horas para monitorar impactos cardíacos. “Poderia ser num CAPS3”, lamentou Bruno Gomes, psicólogo que acompanha pacientes do médico, referindo-se a centros de atenção psicossocial para casos graves.
Grupos de pesquisa buscam alternativas para facilitar a introdução de psicodélicos na clínica. Um dos adiantados é o Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UDRN), liderados por Dráulio de Araújo, Nicole Galvão-Coelho e Fernanda Palhano-Fontes, célebre por estudo de 2019 com ayahuasca para depressão.
Eles trabalham agora com DMT, psicoativo do chá amazônico, mas inalado num vaporizador. O efeito dura 15 minutos, o que deixa de exigir retenção do paciente e monitoramento especializado por várias horas, como as 4 ou 6 de uma sessão com ayahuasca. Já fizeram a fase 2a (sem placebo) e agora planejam a 2b (com).
“A acessibilidade nos levou a passar da ayahuasca à DMT”, disse Palhano-Fontes. Ela e Galvão-Coelho estão entre as 15 agraciadas com o prêmio da Capes Elsevier Mulheres na Ciência, por seu impacto na pesquisa brasileira.
Outra alternativa está na mira de Tiago Sanchez, do Ipub-UFRJ, que estuda a via de inalação com doses baixas de 5-MeO-DMT, originalmente obtido do veneno do sapo-do-rio-colorado (Bufo alvarius, ou Incilius alvarius). Mas este grupo ainda está na fase 1, para testar segurança e tolerabilidade com voluntários saudáveis.
O choque de realidade veio com Clarice Pires, da startup psicodélica Scirama. A economista ressalvou que, para ir ao SUS, psicodélicos necessitam passar pela Anvisa com testes clínicos com objetivo regulatório. A agência de vigilância precisa aprovar cada fase do estudo, o que exige “um caminhão de dinheiro e oito anos pelo menos”.
Para o ensaio com psilocibina contra depressão a Scirama fechou parcerias com uma empresa do Canadá, que vai doar a droga, e com instituições acadêmicas do Rio como UFRJ, PUC e Idor. Meio caminhão de dinheiro virá de Brasília, por meio da Embrapii, empresa federal de apoio à inovação, e a outra metade de investidores privados do Brasil e da Europa.
Inovação ancestral, alguém disse. De fato, seria muito inovador “mover o imaginário do proibicionismo num país essencialmente proibicionista”, como disse na abertura o psiquiatra Pedro Gabriel Delgado, diretor do Ipub-RJ e anfitrião do evento.