Os efeitos da ditadura
Cresci escutando a história de Rubens à mesa do jantar. Minha mãe também se preocupava em contar a de Stuart Angel, filho da estilista Zuzu Angel, morto pela ditadura de forma cruel —há um filme sobre seu indigesto assassinato protagonizado por Daniel Oliveira e Patrícia Pillar que se chama Zuzu Angel. A própria Zuzu morreu assassinada anos depois. Lá em casa, dona Neise também narrava o dia em que entraram na sua sala da faculdade indignados gritando: “mataram o Herzog!” Ela, que cursava matemática, se apressou em recolher o material e ir para casa, por recomendações de meu avô, simpatizante dos militares. Precisou ler só mais um pouquinho para entender que ir para casa calada para se manter em segurança não era muito justo: a ditadura era perigosa demais para quem queria falar. Eu gosto de dizer o que penso, por exemplo.
O sorriso de Eunice no rosto de Fernanda, entretanto, me lembra uma teoria que sempre volta à cabeça: o vampirismo nos relacionamentos. Há pessoas que se alimentam da dor do outro, em um comportamento vampiresco. Para se alimentar de sangue, é preciso fazer o outro sangrar. O prazer de ver o suposto inimigo apavorado deixa o algoz mais forte.
Eunice contraria a lógica: se sua casa é invadida por agentes dos militares que lá fincam acampamento, ela oferece jantar. Permite que joguem pebolim (ou totó, para os cariocas). Sorri com gentileza. Ninguém entende nada. Não entra em surto em praticamente nenhum momento. Os militares nem sequer a viram chorar. Sem banho, sem comida, sem dignidade, mas sem lágrimas.
Eu, que surtaria por muito menos, acho bonito. “Não alimente os vampiros”, costumo dizer. O nosso sofrimento, especialmente público, é o troféu deles. Algum filósofo já deve ter falado algo sobre cair sorrindo para confundir o vilão. Ou seria a Bíblia que ameaça vingança com felicidade. Acho que é Valesca Popozuda mesmo que faz Deus de escudo e deseja aos inimigos vida longa para que vejam a cada dia mais sua vitória.
Se formar em direito, lutar pelas populações amazônicas quando isso não era assunto nacional, conquistar o atestado de óbito do marido sorrindo porque aquele é seu direito, criar cinco filhos —sendo que um deles escreveu lindamente seu legado…. Que os inimigos de Eunice vejam a cada dia mais a sua vitória. Os nossos também. Transformar a dor em causa para proteger os próximos é uma bela bandeira para se carregar.