Seu último filme, “Império dos Sonhos” (2006), seguia uma narrativa fragmentada com personagens frequentemente habitando um mundo onírico, separados violentamente da realidade. Foi seu único trabalho realizado durante seu fascínio inicial pela internet —ele criou um site em dezembro de 2002 para abrigar curtas, um ringtone e uma webserie surrealista, além de gravar, diariamente, a previsão do tempo em Los Angeles. A URL davidlynch.com é redirecionada hoje para seu canal no YouTube.
Cada uma de suas incursões artísticas – fosse no cinema e na TV, como pintor e escritor, como designer e músico —revelava um artista único, talento que fez uma realidade estranha e impenetrável, de regras rompidas e limites ultrapassados, tornar-se acessível no tecido da cultura pop. David Lynch fará falta imensa em um mundo cada vez mais retrógrado e reacionário. Talvez ele dissesse, como marcou sua família no comunicado sobre sua morte, “Mantenha os olhos no donut, e não no buraco”.
Raios de sol dourados
“Cidade dos Sonhos” foi concebido como uma série de TV. O piloto foi recusado pela rede ABC, a mesma de “Twin Peaks”, levando Lynch a reimaginar o material como um longa: uma aspirante a atriz (Naomi Watts) chega em Los Angeles e tem seu caminho cruzado por uma mulher que, depois de um acidente, sofre de amnésia (Laura Herring). No poster se lia “Uma História de Amor na Cidade dos Sonhos”.
À medida que o filme avançava, com suas figuras de identidade múltipla, sua narrativa fragmentada e explosões sensoriais, era difícil ignorar meu próprio incômodo. “Cidade dos Sonhos” era um filme de terror, era também um estudo de personagem, era um comentário sobre causas e consequências da fama. Era tudo isso e não era nada disso. Lynch se recusou, em Cannes durante seu lançamento e nos anos seguintes, a tecer qualquer explicação sobre seu significado.
Lembrei-me, a certa altura, de “Eraserhead”. Sem fazer concessões, projetando luz e som diretamente em nosso subconsciente, David Lynch criara já na largada um rito de passagem, uma chave para compreender o poder transformador do cinema. Décadas depois, em um cinema de Los Angeles, uma plateia pequena abria mais uma vez essa porta. Lá, aqui, ontem e hoje, no sofá da sala e no mundo todo. Do lado de fora, a vida seguia. Ainda segue. “É um belo dia com raios de Sol dourados e um céu azul a perder de vista.”