Como novelão que se preze, “Pantanal” fechou seu ciclo com casamento coletivo e fertilidade em alta: mulheres que passaram 168 capítulos em cena finalmente engravidaram.
Mas não foi só a fotografia, mérito do cenário a céu aberto e da presença de um diretor como Walter Carvalho na equipe, que fez a releitura de Bruno Luperi para a obra do avô, Benedito Ruy Barbosa, superar a curva do gênero.
Quem se queixava do fato de o neto não ter alterado drasticamente as linhas originais pôde aplaudir o primeiro beijo gay em uma novela de Ruy Barbosa, o que não é pouca coisa para um universo permeado pelo machismo e pela homofobia como aquele onde José Leôncio (Marcos Palmeira) teve a chance de rever seus valores.
Zaquieu (Silvero Pereira) encontrou seu par, vivido por Tommy Schiavo, nas bodas de José Leôncio (Marcos Palmeira) e Filó (Dira Paes), festa que uniu ainda Zefa (Paula Barbosa) e Tadeu (José Loreto), além de José Lucas (Irandhir Santos) e Irma (Camila Morgado).
A poesia do capítulo final se ocupou da utilidade pública na redenção de Alcides (Juliano Cazarré), ex-macho tóxico que em outros dias desafiou Jove (Jesuíta Barbosa) na faca. E ele não só tira Zaquieu para dançar, como beija o velho amigo no rosto, como os machos forjados na lida dos peões do agrobusiness mal se permitem.
A sororidade deu o ar da graça no abraço de Zuleika (Aline Borges) e Maria (Isabel Teixeira), outrora mulheres simultâneas do traste do Tenório (Murilo Benício), morto alguns capítulos anteriormente.
E a própria Maria ressurge na figura de uma mulher capaz de valorizar seu carão bonito, emoldurado pelo cabelão cacheado, toda trabalhada na make up e no decote justo. O poder da outrora Bruaca foi sublinhado pelo bordão de um conhecido coronel da dramaturgia, Sinhozinho Malta (Lima Duarte), de “Roque Santeiro”, quando ela chacoalha as pulseiras e pergunta: “Tô certa ou tô errada?”
Final de novela tudo perdoa e a todos abençoa. É evidente que alguém como Alcides não se despiria de tantos preconceitos de um dia para o outro, mas o benefício da ficção pode e deve ser usado para inspirar plateia tão expressiva como essa —que se permite hipnotizar por uma novela de horário nobre da Globo, alvo de alto engajamento, com mais de 30 milhões de espectadores.
O tom de homenagens se estendeu à presença da Juma original, com Cristiana Oliveira à mesa do casamento, ao lado da Madeleine daquela época, na figura de Ingra Liberato.
Até Sérgio Reis, que esteve na produção da Rede Manchete há 32 anos e jurava que não participaria do remake para “não dar audiência para a Globo”, por divergências políticas, apareceu para compor a roda de viola do casamento, ao lado do velho parceiro Almir Sater, seu par musical na “Pantanal” original.
Justiça seja feita: não houve canção mais tocada e cantada ao longo da novela que “Cavalo Preto”, cuja gravação mais famosa é do próprio Serjão.
Os longos repiques do berrante selaram o reencontro tão esperado entre pai e filho, Velho do Rio e José Leôncio, e a passagem de bastão do personagem que representa a entidade do Pantanal. Osmar Prado submerge nas águas do rio para dar seu lugar e figurino a Palmeira, o incontestável herói da história e maestro da saga.
A imagem do Velho e todos os seus diálogos encontram encanto no espectador como um consolo para a morte. “Você está tão vivo quanto eu”, diz o velho Joventino a Leôncio, assim que ele morre, sem se dar conta de sua condição. “Nada morre”, avisa o patriarca, antes de se despedir do filho.
O sucesso de “Pantanal” pela segunda vez, 32 anos após a primeira versão, coloca o título na prateleira dos fenômenos da TV. Todo enredo carece de alguma atualização, o que Luperi fez por meio de muitos detalhes de diálogos e situações ao longo da trama, mas a espinha da saga se mostrou atemporal, o que é próprio das sagas e do folclore.
Não houve novela que tenha abalado mais a Globo ao longo de seus mais de 50 anos de liderança, ou de 1970 para cá, do que “Pantanal” pela Manchete. Isso torna a recém-encerrada reverência da emissora à obra ainda mais histórica.
O ponto final veio na voz do autor original, hoje com 91 anos, para a leitura de um texto que consagra também o papel de “Pantanal” na causa ambiental. Diz ele:
“O homem é o único animal que cospe na água que bebe.
O homem é o único animal que mata para não comer.
O homem é o único animal que derruba a árvore que dá sombra e frutos.
Por isso está se condenando à morte.
Palavras do meu pai, o Velho do Rio.”
Assina: Benedito Ruy Barbosa