É comum a vontade de começar tudo de novo, para ver se desta vez dá certo. Todo mundo já sonhou com a possibilidade de ter uma nova chance, de voltar atrás e, naquele momento decisivo, revisar os erros como se revisa um texto, apagando frases, suprimindo parágrafos, aperfeiçoando o enredo. O terceiro mandato de Lula será a 12ª tentativa de renascimento do Brasil em seis décadas de história republicana.
A fuga de Bolsonaro para os Estados Unidos na antevéspera da nova posse de Lula potencializou a certeza de que o novo recomeço terá que partir do zero. Fracassos anteriores deixaram ensinamentos, aproximando o país de resoluções relevantes. O desastre Bolsonaro serviu apenas para demonstrar o que não deve ser tentado nunca mais. O brasileiro foi arrastado para o passado. Vive hoje a ressaca dos anos 60.
Jânio Quadros e a vassoura que ele prometera usar para varrer a corrupção terminaram em renúncia. João Goulart, o vice que assumiu graças ao arranjo do parlamentarismo, acabou em deposição. O golpe militar de 64, que foi o desejo de mudança de muita gente, resultou em duas décadas de ditadura.
A mobilização épica pelas “Diretas Já”, quarta tentativa de recomeço, deu em frustração. Decepcionaram-se os democratas, que tiveram que adiar o direito ao voto, e João Figueiredo, o último general-presidente, cujo epílogo foi uma declaração patética.
Instado numa entrevista de despedida a dirigir algumas palavras ao “povão”, Figueiredo sapecou: “Bom, o povo, o povão que poderá me escutar será talvez os 70% de brasileiros que estão apoiando o Tancredo. Então, desejo que eles tenham razão, que o doutor Tancredo consiga fazer um bom governo para eles. E que me esqueçam.”
Tancredo Neves, a quinta tentativa de reescrever a história, terminou na cova. Tancredo saltou da vitória no colégio eleitoral para a cama de hospital. Morto, foi velado no Planalto antes de descer à sepultura. Deixou como herança o vice José Sarney, egresso da ditadura. Na gestão Sarney, a sexta tentativa, a restauração democrática confundiu-se com a anarquia econômica e administrativa.
Fernando Collor, primeiro presidente eleito pelo voto direto após a redemocratização foi o sétimo recomeço. Escorraçado pelo impeachment, revelou que o Brasil não aprendera com Jânio a desconfiar dos salvadores providenciais.
Fernando Henrique Cardoso aproveitou o interlúdio representado por Itamar Franco para encaminhar, como ministro da Fazenda, a resolução do problema do combate à superinflação. Como presidente, após consolidar a mudança do regime monetário introduzida pelo Plano Real, FHC como que tirou das sombras todas as precariedades nacionais que eram obscurecidas pelo descalabro inflacionário: saúde sofrível, educação precária, desigualdade inaceitável…
A Presidência pluritemática empurrou a oitava tentativa de renascimento para uma impopularidade que mantém o tucanato longe do Poder há mais de duas décadas. Em 2022, em estágio avançado de autocombustão, o PSDB desistiu de apresentar um candidato à Presidência. Saiu das urnas como um pequeno partido, a caminho do nanismo.
Lula 1, o oitavo recomeço, tornou-se um caso único de presidente que sofreu emboscadas da Presidência quando já estava fora dela. Seu estilo de governar, firmando alianças tóxicas financiadas à base de mensalões e petrolões, revelou-se uma rendição à oligarquia política e empresarial.
Após usufruir de seus dois primeiros mandatos, Lula deixou o Planalto enfiando os dedos no favo de mel de uma taxa de popularidade de 84%. Lambendo as mãos, elegeu a sucessora duas vezes. Tentava fugir das abelhas quando foi preso.
Dilma Rousseff, o novo recomeço, foi vendida por seu criador como supergerente. Revelou-se um conto do vigário no qual o próprio Lula caiu. Entre 2013 e 2016, a economia brasileira encolheu 6,8%. O desemprego saltou de 6,4% para 11,2%. Foram ao olho da rua algo como 12 milhões de pessoas. Se Lula passou à história como presidente que fez a sucessora, Dilma imortalizou-se como a criatura que desfez a obra do criador.
Michel Temer, resultado da deposição de Dilma, sonhou em passar à história como presidente reformista. Depois do grampo do Jaburu, tudo virou epílogo no enredo do seu governo. Sobreveio Bolsonaro, o 11º recomeço. Catapultado pelo antipetismo do baixo clero parlamentar para o Planalto, Bolsonaro comandou o governo civil mais militar da história.
Em quatro anos de Bolsonaro, o Brasil consolidou-se como o mais antigo país do futuro do mundo. Experimentou uma metamorfose às avessas. Como uma borboleta que volta à condição de larva, a pátria chega a 2023 arrastando atrás de si o seu passado como um casulo pesado e pegajoso.
Mal comparando, Bolsonaro transformou a Presidência em algo muito parecido com um cano furado. Um esbanja água em esguichos perdulários. Outro esbanjou tolices e inverdades. O penúltimo jorro de Bolsonaro aconteceu na última sexta-feira.
Antes de fugir para Orlando, paraíso do rato Mickey Mouse, o capitão ressurgiu numa live para dizer coisas assim: “Como foi difícil ficar dois meses calado trabalhando para buscar alternativas!”. Ou assim: “Tem gente chateada comigo, dizendo que deveria ter feito alguma coisa, qualquer coisa. Mas, para você conseguir fazer alguma coisa, mesmo nas quatro linhas, você tem que ter apoio”.
A certa altura, Bolsonaro assumiu sua condição de camundongo autocrata: “Entendo que fiz a minha parte, estou fazendo a minha parte. Agora, certas medidas têm que ter apoio do Parlamento, de alguns do Supremo, de outros órgãos e instituições”.
Ficou entendido que o Brasil só não virou uma ratocracia porque as barricadas erguidas pela imprensa e pelo Judiciário, o instinto de sobrevivência dos aliados no Legislativo, a reação da maioria do eleitorado e os sinais emitidos pela comunidade internacional forçaram o capitão a se render à realidade: “Não posso fazer algo que não seja bem feito e que, assim, os efeitos colaterais sejam danosos demais.”
Bolsonaro desce ao verbete da enciclopédia como o presidente que virou a página da história para trás. Tornou-se um sub-Figueiredo. Há, porém uma diferença notável: o pedido do último presidente do ciclo militar —”Me esqueçam”— foi prontamente atendido pelos brasileiros. Bolsonaro adicionou à recusa de passar a faixa presidencial ao sucessor a fuga para o exterior. Entretanto, continua boiando na atmosfera como uma ameaça insepulta. Avisou que não cogita “jogar a toalha”.
Nas urnas de outubro, 60,3 milhões de brasileiros —o equivalente a 50,9% dos votos válidos no segundo turno de 2022— concederam a Lula 3 a oportunidade de liderar uma 12ª tentativa de renascimento . Foi uma vitória apertada. Bolsonaro degustou a preferência de 58,2 milhões de eleitores —ou 49,1% dos votos válidos.
A despeito da vantagem magra, imaginou-se que, depois de tantos recomeços em falso, o Brasil finalmente deixaria de ser uma Terra plana. Entretanto, pesquisa Datafolha revelou que 39% dos brasileiros avaliam que a gestão ruinosa do capitão foi ótima ou boa. Outros 24% consideram que o desempenho de Bolsonaro foi regular.
É como se 63% da sociedade transitasse entre o inacreditável e o inaceitável. Um pedaço do país tem dificuldades para aceitar as ideias de Copérnico, para quem a Terra gira em torno do Sol. Outro naco hesita até mesmo em aceitar Darwin.
Bolsonaro definiu a disputa eleitoral de 2022 como uma “guerra do bem contra o mal.” A agora ex-primeira-dama Michelle rogou a Deus que afastasse do Planalto as assombrações demoníacas. Suas preces foram momentaneamente atendidas. O maligno já não dá expediente na Presidência, E madame tornou-se um adereço da fuga do marido.
Nos mais de 60 anos que separam Jânio de Bolsonaro, o Brasil conviveu com duas formas de Poder discricionário: a ditadura institucionalizada e a ditadura da personalidade. Excetuando-se certos personagens que foram mais transições do que presidentes, proliferaram os ditadores e os loucos. A benevolência divina vinha poupando o país de alguém que acumulasse as duas condições. Súbito, surgiu Bolsonaro.
O Brasil é um país que, além de dois presidentes submetidos ao impeachment, teve outro presidente que morreu no dia da posse. Antes, teve um que renunciou. E, antes ainda, teve um que se suicidou no Palácio. Nesse contexto, Lula tem a oportunidade de transformar a herança maldita de Bolsonaro num desastre didático e purgativo. Do contrário, arrisca-se a levar o país a confundir novamente em 2026 o histrionismo autocrático com substância e a loucura com solução.