É curioso observar como o homem muda conforme avança o tempo, bem como também causa espécie que nossa natureza mesma reforja-se de acordo com o sem fim de revoluções tecnológicas que seguimos experimentando, mormente no último meio século. Mais instigante é notar, muito de perto, a relação destacadamente idiossincrásica que certas pessoas desenvolvem com suas bugigangas eletrônicas, e é nessa frequência que o sul-coreano Tae-joon Kim trabalha em “Na Palma da Mão”, um thriller que prima pela originalidade — como sói fazer a esmagadora maioria das produções daquele país —, em que chavões abrem espaço para novas concepções de mundo ainda que aqui o suspense ágil proposto pelo diretor não se atenha a grande elucubrações filosóficas acerca de nossas prováveis incorreções quando em poder desses aparelhinhos mágicos e diabólicos que nunca mais hão de nos abandonar. Aqui isso acaba por ter a essência de uma verdadeira maldição, que pulsa por quase mais de duas horas sem que se recorra a soluções fáceis.
A abertura, como um clipe usado em anúncios de celular, repleta de cenas editadas em corte seco, mistura-se aos comentários do diretor-roteirista a respeito da pandemia de covid-19, atualizando o texto de “Stolen Identity” (“identidade roubada”, em tradução literal) do japonês Akira Teshigawara, romance que o filme se baseia. O cotidiano de uma garota, típica representante da classe média sul-coreana, é registrado em quase todos os seus detalhes mais comezinhos, de pedido de músicas para o aplicativo faz-tudo a troca de mensagens aleatórias e gratuitas entre as amigas, passando pela comunicação com a chefe. Esse frenesi cibernético, em que o celular domina a vida da personagem central, e não o contrário, presta-se a reforçar a importância do elemento tecnológico, que começa a se fazer onipresente pouco depois, quando entra no radar de um psicopata incansável. Amalgamado a esse torvelinho de eventos pouco estimulantes, mas filmados de modo a excitar o público quanto ao que vem em seguida, Tae-joon menciona a perda do celular de Na-mi, num ônibus, depois de uma noitada. A princípio, tudo é mesmo só o que se vê, mas no desfecho são válidas algumas insinuações moralistas acerca do comportamento da moça, defendida com convicção por Chun Woo-hee.
O argumento central, o hackeamento de tudo quanto o dispositivo armazena, abre o suspense da narrativa, que se encadeia no esforço de Na-mi em se desvencilhar do assédio cada vez mais físico de Jun-yeong, o psicopata encarnado com genuíno afinco por Si-wan Yim. A montagem não descuida de sempre fornecer à audiência os recursos que mantém-na sempre muito atenta ao que “Na Palma da Mão” pretende comunicar, a exemplo da passagem curtíssima, mas esteticamente perturbadora, da fila de pessoas numa escada rolante, todas hipnotizadas pelo brilho azulado da tela de um telefone. Enquanto isso, Jun-yeong continua sua devassa na privacidade de sua vítima, até que o andamento da história torna-se maduro o bastante para desaguar num terceiro ato de um terror psicológico que literalmente tira o ar.
O grande mérito do longa é conseguir equilibrar-se entre a névoa gélida de mistérios que parecem não terem mais para onde ir e as saídas mesmerizantes que Tae-joon Kim encontra para conduzir o filme a outra etapa, como num videogame realista demais, o que Steven Soderbergh já havia conseguido com “Kimi: Alguém Está Escutando” (2022), no mesmo campo semântico. Não há novidades dignas de notas em “Na Palma da Mão”, mas este, decerto, é um filme invulgar.
Filme: Na Palma da Mão
Direção: Tae-joon Kim
Ano: 2023
Gêneros: Mistério/Suspense
Nota: 8/10