Tipos cujos coração e mente irmanam-se num processo intrincado e um tanto autodestrutivo, em que o empenho de boa parte de sua energia é gasta na procura desesperada por alguma lembrança que os movam para um lugar onde consigam se refugiar da vida miserável que julgam perfeita ocupam o cinema — e o mundo — desde sempre. “O Cobrador de Dívidas 2”, a continuação do filme de 2018 em que Jesse V. Johnson apresenta dois anti-heróis infelizes cada qual a seu modo, travando uma luta desleal consigo mesmo para deixar o submundo enquanto podem, malgrado o invencível desejo de reparação aliado a oponentes bastante reais que os perseguem sem trégua, dispõe de uma mancheia de recursos para mobilizar também o público na busca dos dois, sem que ninguém jamais se iluda quanto aos eventos que hão de se desenrolar nos 97 minutos seguintes. Como sói acontecer em produções dessa natureza, a mágica se dá em esferas muito distintas, pouco inventivas, nada revolucionárias, mas sempre eficazes.
Johnson mantém a cadência do enredo original, marca registrada do texto, mais uma vez escrito junto com Stu Small, mas conforme a trama ganha corpo, também aparecem traços de outros projetos da filmografia do diretor e de seu roteirista mais assíduo quanto a atender as expectativas do público, oferecendo, claro, as incontáveis sequências de confrontos físicos que tornam filmes como esse uma atração à parte no vasto universo do cinema macho, definido pela onipresença de protagonistas visivelmente perdidos no pouco de dignidade que ainda lhes resta, mas que sabem se valer de seus predicados viris para resgatar o apetite pela vida. Nesse particular, “O Cobrador de Dívidas 2” tem muito de “Implacável” (2019), um conto sobre desencontros familiares e negócios escusos em que French e Sue, criminosos entre xexelentos e fanfarrões que atingem a meia-idade graças a um extraordinário instinto de sobrevivência aliado ao invulgar senso de oportunidade, precisam se desdobrar para dar conta de um serviço que, a depender deles — mais de French que de Sue, para ser exato —, será o último. Esse ramo, explicitado no título, além de não oferecer fundo de garantia, plano de carreira nem quaisquer benefícios previdenciários, costuma ser traiçoeiro, não observar sutilezas como ética ou lealdade e apresenta uma rotatividade acima do normal, muito em razão do fogo amigo que pulveriza os mais afoitos.
Scott Adkins e Louis Mandylor na pele dos personagens-título são convincentes como os bandidos carismáticos — Adkins sobretudo, e a balança pende para o lado dele em algumas outras categorias —, quase engraçados, porém nunca histriônicos, que se deslocam para Las Vegas no intuito de completar sua missão, até porque não tem escolhas muito civilizadas, depois de limarem as últimas arestas no bar em que French — cujo apelido nunca é satisfatoriamente explicado, nem mesmo na sequência em que um quebra-quebra iminente relembra a dominação inglesa de George 3° (1738-1820) na Europa — trabalha. A parada na boate de Mal Reese, misto de cafetina, traficante e apoio dos chefões do submundo, começa a levar o filme para onde aporta com estardalhaço, e não sem motivo a personagem de Marina Sirtis volta no desfecho, provendo a história de mais algum fôlego nesses momentos cruciais. O diálogo incisivo entre Mal e Sue pouco antes dessa guinada brusca é um lance saboroso do roteiro, o que torna a acontecer numa certa conversa de travesseiro entre os dois brucutus sobre suas esdrúxulas vivências amorosas, num quarto de motel.
A bagunça conceitual de “O Cobrador de Dívidas 2”, inclusive na fotografia de Jonathan Hall e na trilha de Sean Murray, diretamente associada ao western, terminam por se destacar num filme exasperantemente pasteurizado em tantos momentos. Ainda não há perspectiva de um terceiro filhote dessa ninhada; contudo, o que já se sabe de antemão é que Johnson e Small decerto continuarão a molestar e entreter muita gente. E quem ninguém lhes exija muito mais que isso.
Filme: O Cobrador de Dívidas 2
Direção: Jesse V. Johnson
Ano: 2020
Gênero: Ação
Nota: 8/10