Contar uma história que procura a todo custo evocar na audiência uma mensagem de otimismo — a despeito da gravidade dos assuntos que aborda — pode ser uma missão cruel, uma vez que nem sempre se chega ao equilíbrio perfeito entre entretenimento e reflexão. “O Lado Bom da Vida” se livra da cilada de seduzir a plateia de modo tolo valendo-se de protagonistas reconhecidamente carismáticos, cujo valor artístico (e monetário) aumenta a olhos vistos em Hollywood. Romance completamente anticonvencional, o filme é, sem mercês, uma revelação em meio a tanta baboseira pseudoartística que tenta conferir lastro de filme de amor a produções de todo descartáveis.
Num de seus trabalhos mais inspirados, David O. Russell junta dois astros jovens e bonitos do cinema contemporâneo sem a menor cerimônia em fazê-los passarem por tipos desajustados, em apuros psiquiátricos sérios o bastante para serem encarados até com certa repulsa, e a partir de então, burilá-los, remover as camadas da doença mental — diagnosticada, mas tratada aos trancos e barrancos — a fim de deixar florescer a beleza do que querem transmitir. A trama, lançada no Brasil em 8 de fevereiro de 2013, apresenta um Bradley Cooper muito diferente do que sua figura se habituou a representar no cinema desde que o ator surgiu na televisão, na bobinha “Sex and the City”, em 1999, com uma ou outra exceção pontual. Construindo uma carreira com bastante disciplina, tijolo por tijolo, Cooper talvez tenha chegado ao melhor papel de sua trajetória profissional em “O Lado Bom da Vida”. Seu personagem, o professor Patrizio Solitano Jr., o Pat, se presta a uma função quase desbravadora.
Ao falar do distúrbio mental desencadeado num homem que, depois de flagrar a mulher no chuveiro com outro, nunca volta ao que era, Russell sabia muito bem os riscos a que estaria se expondo. Obviamente, Pat voa sobre o sujeito — evento que o diretor, com acerto, apenas sugere — e a demonstração (inconsciente) de virilidade e honradez custa-lhe caro. O protagonista é internado num hospital psiquiátrico onde permanece por oito meses, perde o emprego no colégio onde o amante da esposa Nikki, personagem de Brea Bee, também lecionava e, ironicamente, não consegue deixar de amá-la, se é que o tenta. Por ser forçado a cumprir a medida restritiva que o obriga a manter ao menos 150 metros de distância da agora ex-cônjuge, tem de se submeter a morar de favor com os pais, Dolores, vivida pela atriz australiana Jacki Weaver, já experimentada, e em grande forma, tanto aqui como em “Reino Animal”, de 2010, dirigido pelo compatriota David Michôd, e Pat Sr., de Robert De Niro, que dispensa apresentações, mas que exibe rendimento muito inferior à expectativa, tanto pior se comparado com Weaver, com quem contracena com mais assiduidade e que levanta a bola que o veterano nem sempre pode cortar.
O primeiro anticlímax do roteiro é marcado pela entrada de Jennifer Lawrence em cena, nunca dispensável e tampouco gratuita. Tiffany, sua personagem, perde o marido policial de forma prematura e violenta, trauma a que responde indo para a cama com os todos os colegas do escritório em que trabalhava, o que também resulta em demissão. Apresentados num jantar oferecido por sua irmã, Veronica, interpretada por Julia Stiles, e o marido, Ronnie, papel de John Ortiz, Pat e Tiffany logo se rendem à atração que só dois indivíduos com suas características tão peculiares podem desenvolver um pelo outro.
A transição de Pat e Tiffany da condição de vilões para mocinhos e vice-versa é o grande mote do filme. Derrubando alicerces sólidos da sociedade em que se inserem, cada um a seu modo, a dupla compõe personagens densos, sobre os quais é impossível se formular alguma conclusão precipitadamente. A ironia cheia de método de Russell ao apresentar Pat como um louco por apresentar o comportamento que se espera de qualquer pessoa normal e agredir o homem que transava com sua esposa — e sua dignidade, inconsciente ou cultivada, em não impingir o mesmo castigo à adúltera (até porque não adiantaria mesmo) — acha esteio na reação autodestrutiva retratada na promiscuidade de Tiffany. Ele, limpando sua honra com o sangue do homem que conspurcara seu casamento, torna-se merecedor de um isolamento de oito meses num hospício; ela, por sua vez, entregando-se sem pudores à conduta indecorosa que a ausência do marido lhe causa, recebe a condenação da família e passa a ter de viver numa edícula, nos fundos da propriedade em que moram os pais. Ou seja, estão cercados.
À medida que se aproximam, Pat e Tiffany descobrem os tantos pontos de contato em suas personalidades, bem como o que os repele entre si. Desde o primeiro momento, o personagem de Cooper deixa claro que, malgrado toda a desgraça que se lhe abatera, ainda amava Nikki, argumento a que Tiffany finge acatar, mas intuindo, corretamente, que pode chegar ao coração do professor. Para tentar se reaproximar de Nikki, Pat resolve escrever uma carta se desculpando por todo o contratempo que pode ter lhe causado, propondo, como se isso fosse mesmo possível, que recomeçassem de onde haviam sido obrigados a parar. Como Veronica é amiga de Nikki, Tiffany se oferece a persuadir a irmã a entregar a mensagem, desde que Pat aceite ser seu par num concurso de dança. O que se assiste na sequência, com variações de intensidade e enfoque, é o congraçamento de dois atores cuja química já deu azo para muita fofoca, mas que nunca passou de uma amizade desinteressada e, por evidente, a cenas memoráveis em “O Lado Bom da Vida”, parceria revisitada outras três vezes — em “Trapaça” (2013) e “Joy: O Nome do Sucesso” (2015), também dirigidos por David O. Russell, e “Serena” (2014), de Susanne Bier. Desde os ensaios para o concurso, que redundam numa apresentação deliciosamente sui generis, ponto alto do filme, os dois atores oferecem ao público interpretações sublimes, mais Cooper que Lawrence, que se diga. Por não desfrutar do star appeal de que goza a colega, o ator teve de, literalmente, rebolar para manter o frescor de seu personagem, missão que conclui bravamente. Sua escolha por uma performance minimalista, dando espaço para Tiffany se manifestar na hora certa, é sua estratégia matadora. Bradley Cooper lança mão de seus dotes físicos, do olhar penetrante, da voz maviosa, para sobressair a fragilidade de Pat, o que poderia fazê-lo se atirar a uma canastrice aterradora. Certo de seu talento, não se intimida com a estatura artística de Lawrence e mostra um desempenho irrepreensível, que comove por exprimir a força aprisionada por trás de um homem alquebrado pela vida — o que lhe daria todas as credenciais para, ao menos, a indicação ao Oscar, como aconteceu com ela, que venceu o prêmio de Melhor Atriz da Academia pelo papel, em 2013.
“O Lado Bom da Vida”, no entanto, não se conforma em ser uma disputa de dois grandes atores, muito menos uma guerra de egos — aliás, pelo contrário. Todos os elementos operam em conjunto, proporcionando um todo coeso, uno, redondo, acurado, mediante o qual a ideia de reconstrução da vida fica muito clara para o espectador. E a da reordenação dos afetos, por mais improvável que isso possa ser.
Filme: O Lado Bom da Vida
Direção: David O. Russell
Ano: 2012
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 10