“Era um dia claro e frio de abril, e os relógios marcavam uma da tarde.” Mais de 70 anos após a publicação da obra-prima de Orwell, “1984”, essa primeira frase parece mais natural e atraente do que nunca. Entretanto, ao analisarmos o manuscrito original, encontramos algo além: não somente o toque de clareza, mas também as correções obsessivas, em variados borrões de tinta, que revelam o tumulto extraordinário por trás da composição. Provavelmente o romance definitivo do século 20, “1984” é uma história que permanece eternamente atual e contemporânea, cujos termos como “Big Brother”, “Duplipensar” e “Novilíngua” se tornaram parte do cotidiano. Traduzido para mais de 70 línguas e com milhões de cópias vendidas pelo mundo, “1984” garantiu a George Orwell um lugar único no universo literário.
“Orwelliano” tornou-se um símbolo universal para qualquer situação repressiva ou totalitária. A história de Winston Smith, um homem comum para seus tempos, continua a reverberar para leitores cujos medos do futuro são bem diferentes dos daquele escritor inglês de meados dos anos 1940.
As circunstâncias que permeiam o processo criativo de “1984” constroem uma narrativa fantasmagórica que auxilia a entender a desolação da distopia de Orwell. Aí estava um escritor inglês, gravemente doente, lutando sozinho contra os demônios de sua imaginação em uma residência escocesa, em meio aos vestígios da Segunda Guerra.
O nascimento de 1984
A ideia de “1984”, cujo título alternativo era “O Último Homem na Europa”, vinha sendo incubada na mente de Orwell desde a Guerra Civil Espanhola. Esse romance, que apresenta traços da ficção distópica de Yevgeny Zamyatin, provavelmente começou a tomar uma forma definitiva durante os anos de 1943 e 44, período em que ele e sua esposa Eileen adotaram seu único filho, Richard. Orwell chegou a afirmar que se inspirou na reunião dos líderes dos Aliados na Conferência de Teerã em 1944. Isaac Deutscher, um amigo, relatou que Orwell estava “convencido de que Stalin, Churchill e Roosevelt conscientemente traçaram um plano para dividir o mundo” em Teerã.
Orwell colaborou com o jornal britânico “Observer”, de David Astor, a partir de 1942, inicialmente como revisor de livros e posteriormente como correspondente. O editor declarou ter imensa admiração pela “absoluta retidão, honestidade e decência” de Orwell. A proximidade dessa amizade foi fundamental para a história de “1984”.
A carreira criativa de Orwell já havia se beneficiado de sua associação com o “Observer” na concepção de textos de “Animal Farm” (“A Revolução dos Bichos”). Com a iminência da guerra, a interação frutífera entre ficção e jornalismo de domingo poderia contribuir para a obra mais obscura e complexa que ele tinha em mente. Em suas revisões de livros para o “Observer”, por exemplo, ele se mostrava fascinado pela relação entre moralidade e linguagem.
Outras influências marcaram seu trabalho. Logo após a adoção de Richard, as finanças de Orwell foram totalmente dizimadas. A atmosfera de terror constante na vida cotidiana durante os tempos de guerra em Londres se tornou integral ao sentimento do romance em progresso. O pior estava por vir. Em março de 1945, enquanto cumprindo compromissos com o “Observer” na Europa, Orwell recebeu a notícia de que sua esposa, Eileen, havia morrido devido à anestesia em uma cirurgia rotineira.
Subitamente, ele se tornara viúvo e pai solteiro, ganhando a vida com muita dificuldade em acomodações em Islington e trabalhando incessantemente para esquecer o fluxo de remorso e dor causado pela morte prematura de sua esposa. Em 1945, por exemplo, ele escreveu quase 110 mil palavras para várias publicações, incluindo 15 revisões de livros para o “Observer”.
Foi então que Astor interveio. Sua família possuía uma propriedade em uma remota ilha escocesa chamada Jura, perto de Islay. Havia uma casa, Barnhill, localizada a sete milhas de Ardlussa, em um recanto norte isolado, repleto de montanhas rochosas nas Hébridas Interiores (um arquipélago na costa oeste da Escócia). Inicialmente, Astor ofereceu a casa a Orwell para um fim de semana.
A mudança para a ilha de Jura
Em maio de 1946, Orwell, ainda juntando os cacos de sua vida, embarcou em uma longa e árdua viagem de trem para Jura. Ele disse ao seu amigo Arthur Koestler que isso era “quase como embarcar em um navio lotado rumo ao ártico”.
Foi uma mudança arriscada, pois Orwell estava debilitado. O inverno de 1946/47 foi um dos mais frios do século. O sistema de saúde britânico estava debilitado naqueles tempos de guerra, e Orwell sempre sofreu com problemas respiratórios. Pelo menos, distante das irritações da cena literária londrina, ele estava livre para se concentrar no novo romance sem quaisquer obstáculos. “Sufocado pelo jornalismo”, como disse a um amigo, “me senti mais ou menos como uma laranja sugada”.
Ironicamente, parte das dificuldades de Orwell veio do sucesso de “Animal Farm”, seu livro. Após anos de negligência e indiferença, o mundo estava começando a reconhecer seu talento. “Todos estão me procurando”, ele reclamava para Koestler, “querendo que eu escreva, comissões para folhetos, querendo que eu aceite isso ou aquilo — você não sabe como anseio me livrar de tudo isso e ter tempo para pensar novamente”.
Em Jura, ele estaria livre dessas distrações, mas a promessa de liberdade criativa em uma ilha nas Hébridas vinha com um preço. Anos antes, no artigo “Por que eu escrevo”, ele descreveu o esforço necessário para completar um livro: “Escrever um livro é horrível, o esforço é exaustivo, como a crise de alguma doença dolorosa. Ninguém se submeteria a isso se não fosse conduzido por algum demônio, ao qual não se pode resistir ou compreender. Este demônio é o mesmo instinto que faz um bebê espernear por atenção”.
Desde a primavera de 1947 até sua morte em 1950, Orwell reorganizou cada aspecto de seu esforço da maneira mais dolorosa possível. Em particular, talvez ele tenha experimentado a interseção entre teoria e prática. Ele sempre prosperou na adversidade autoimposta.
Primeiramente, após um “inverno quase insuportável”, ele se contentou com a beleza solitária e selvagem de Jura. “Estou lutando com este livro”, escreveu ao seu agente, “que eu possa terminar até o final do ano — de qualquer forma, terei superado a pior parte até que possa me manter afastado do trabalho jornalístico até o outono”.
Barnhill, situada acima do mar no alto de uma estrada deserta, não era grande, contendo quatro quartos acima de uma cozinha espaçosa. A vida era simples, até mesmo primitiva. Não havia eletricidade. Orwell usava um aquecedor a gás para cozinhar e aquecer a água. As lamparinas a parafina iluminavam o ambiente. À tarde, ele queimava turfa. Ainda fumava grandes e finos cigarros pretos: a fumaça na casa era aconchegante, porém nada saudável. Um rádio a bateria era a única conexão com o mundo externo. Assim que seu novo regime foi estabelecido, Orwell pôde, finalmente, dar início ao livro. No final de maio de 1947, ele disse ao seu editor, Fred Warburg: “Acho que devo ter escrito um terço do esboço”.
Orwell, um cavalheiro, desapegado de coisas materiais, chegou trazendo apenas um saco de dormir, uma mesa, um par de cadeiras e alguns potes e panelas. Era uma vida simples, mas satisfazia todas as condições sob as quais ele gostava de trabalhar. Ele é lembrado na região como um espectro na névoa, como uma figura esquelética em um casaco.
Os habitantes locais o conheciam por seu verdadeiro nome, Eric Blair, um homem melancólico, cadavérico e alto que lutava consigo mesmo. A solução, quando se juntaram a ele o pequeno Richard e sua babá, foi recrutar sua irmã, Avril.
“Não avancei tanto, pois fui atingido pela ‘saúde maldita’ desde janeiro (meu peito, como sempre) e não consegui me livrar disso.” Preocupado com a impaciência de seu editor com o romance, Orwell acrescentou: “É claro que o esboço é sempre uma bagunça com pouca relação com o resultado final, mas, ao mesmo tempo, é a base de todo o trabalho”. Mas então, ocorreu um acidente.
Parte do prazer de viver em Jura era que ele e seu filho podiam aproveitar a vida ao ar livre juntos, pescar, explorar a ilha e andar de barco. Em agosto, durante um verão fascinante, Orwell, Avril, Richard e alguns amigos, enquanto voltavam da costa em um pequeno barco motorizado, foram arremessados no famoso redemoinho de Corryvreckan.
A doença
Richard Blair lembra-se de ter ficado com “o sangue congelado” nas águas de frio intenso, e Orwell, cuja tosse constante preocupava os amigos, teve seus pulmões ainda mais comprometidos. Dentro de dois meses, ele ficaria seriamente doente. De forma típica, sua carta a David Astor sobre essa fuga difícil foi breve e até mesmo desapegada.
O esforço intenso com “O Último Homem na Europa” continuou. No final de outubro de 1947, debilitado pela “saúde maldita”, Orwell admitiu que seu romance ainda era “uma bagunça monumental e quase dois terços dele teriam que ser completamente reescritos”.
Ele trabalhava de forma irregular, mas incansável. Os visitantes de Barnhill se lembram do som de sua máquina de escrever vindo de seu quarto, na parte superior da casa. Então, em novembro, sob os cuidados da diligente Avril, ele teve um colapso súbito devido a uma “inflamação pulmonar” e disse a Koestler que estava “muito doente, de cama”. Pouco antes do Natal, em uma carta a um colega do “Observer”, ele brincou com as notícias de que já havia morrido. Finalmente, recebeu seu diagnóstico de tuberculose.
Alguns dias depois, escrevendo para Astor do hospital Hairmyres, ele admitiu: “Sinto-me muito doente”, e reconheceu que, após a doença o pegar de surpresa depois do incidente no redemoinho de Corryvreckan, “como um tolo, decidi não ir ao médico — eu queria terminar o livro que estava escrevendo”. Em 1947 não havia cura para a tuberculose — os médicos recomendavam ar puro e uma dieta regulada — mas havia uma droga experimental no mercado, a estreptomicina. Astor solicitou uma encomenda de Hairmyres, dos EUA.
Richard Blair, filho de Orwell, acredita que seu pai tenha recebido doses excessivas do então novo e milagroso medicamento. Os efeitos colaterais eram devastadores, incluindo úlcera na garganta, bolhas na boca, perda de cabelo, descamação da pele e desintegração dos dedos e unhas. No entanto, em março de 1948, após três meses, os sintomas da tuberculose desapareceram. “É como afundar o barco para se livrar dos ratos, mas vale a pena se funcionar”, disse ele em uma ocasião.
Quando estava se preparando para sair do hospital, Orwell recebeu uma carta de seu editor, Warburg, que lançou outra preocupação. “É extremamente importante”, escreveu Warburg ao seu autor, “do ponto de vista de sua carreira literária, conseguir isso (o romance) até o final do ano, o mais breve possível”.
Embora devesse estar em repouso, Orwell retornou a Barnhill e imergiu na revisão de seu manuscrito, prometendo a Warburg entregá-lo no “início de dezembro”, apesar do clima adverso do outono em Jura. No início de outubro, ele confidenciou a Astor: “Eu me acostumei tanto a escrever na cama que acho que prefiro isso, embora, é claro, seja um tanto desajeitado para datilografar aqui. Estou lutando com os últimos estágios deste maldito livro”.
Os últimos dias
A digitação da cópia original de “O Último Homem na Europa” se tornou mais uma frente na batalha de Orwell com seu livro. Quanto mais ele revisava seu “incrivelmente horrível” manuscrito, mais ele se tornava um documento que apenas ele podia ler e interpretar. Era, como ele disse a seu agente, “extremamente longo, com mais de 125 mil palavras”. Com sua franqueza característica, ele declarou: “Não estou satisfeito com o livro… Acho que é uma boa ideia, mas a execução teria sido melhor se eu não tivesse escrito sob a influência da tuberculose”.
Ele ainda estava indeciso sobre o título: “Estou inclinado a chamar o livro de ‘1984‘ ou ‘O Último Homem na Europa‘“, escreveu ele, “mas provavelmente posso pensar em outro título nas próximas semanas”. No final de outubro, Orwell acreditava que havia terminado. Agora ele precisava apenas de um estenógrafo para ajudar a organizar tudo, de modo que fizesse sentido.
Era uma corrida desesperada contra o tempo. A saúde de Orwell estava se deteriorando, o manuscrito “incrivelmente horrível” precisava ser digitado novamente e o final de dezembro estava se aproximando. Warburg prometeu ajudar, assim como o agente de Orwell. No entanto, devido à falta de entendimento com os digitadores, a situação só piorou. Orwell, sentindo a ajuda fora de alcance, decidiu seguir seus próprios instintos de “ex-aluno de escola pública”: ele faria sozinho.
Em meados de novembro, fraco demais para andar, ele se refugiou na cama com o equipamento necessário para a “horrível tarefa” de datilografar o livro em sua “máquina de escrever decrépita”, completamente sozinho. Sustentado por uma infinita lista de inimigos, inúmeras xícaras de café, chá forte e o calor da parafina, e com ventos fortes castigando Barnhill, dia e noite, ele persistiu. Em 30 de novembro de 1948, o trabalho estava virtualmente concluído.
As páginas datilografadas de George Orwell chegaram a Londres em meados de dezembro, conforme prometido. Warburg reconheceu sua qualidade imediatamente (“um dos livros mais terríveis que já li”) e assim fizeram muitos de seus colegas. Um memorando interno declarou: “se não conseguirmos vender entre 15 a 20 mil cópias, deveríamos ser alvejados!”
Então Orwell partiu de Jura para um hospital especializado em tuberculose em Cotswolds. “Eu deveria ter feito isso dois meses atrás”, disse a Astor, “mas eu queria terminar aquele maldito livro”. Astor novamente se empenhou em supervisionar o tratamento do amigo, mas o especialista responsável por Orwell era bastante pessimista.
Assim que os comentários sobre “1984” começaram a circular, os instintos jornalísticos de Astor vieram à tona e ele começou a planejar um perfil para o “Observer”, um elogio significativo, mas a ideia foi recebida por Orwell com um “certo alarme”. Com a chegada da primavera, ele começou a cuspir sangue e sentia-se “desconfortável na maior parte do tempo”, mas ainda era capaz de se envolver nos rituais pré-publicação do romance, registrando “boas notícias” com satisfação. Ele brincou com Astor que não ficaria surpreso se tivesse que “trocar aquele perfil por um obituário”. “1984” foi publicado em 8 de junho de 1949 (cinco dias depois nos EUA) e foi quase universalmente reconhecido como uma obra-prima, até mesmo por Winston Churchill, que disse ao seu médico ter lido duas vezes. A saúde de Orwell continuava a piorar. Nas primeiras horas do dia 21 de janeiro de 1950, ele sofreu uma hemorragia maciça no hospital e morreu sozinho.
A notícia foi transmitida ao mundo pela BBC na manhã seguinte. Avril Blair e Richard, ainda em Jura, ouviram a notícia no rádio alimentado por bateria em Barnhill. Richard Blair não se lembra se o dia estava claro ou frio, mas lembra-se do choque da notícia: seu pai estava morto, aos 46 anos.
David Astor organizou tudo para o funeral de Orwell nos jardins da igreja de Sutton Courtenay, Oxfordshire. Lá ele jaz agora, como Eric Blair, entre HH Asquith e uma família nativa de ciganos.
Texto publicado originalmente pelo semanário britânico The Observer e traduzido para a Revista Bula por Amanda Górski.