Quase sempre, a relação entre pais e filhos é, cheia de idas e vindas, altos e baixos, situações em que a parte mais velha desaconselha muitas das atitudes que definem e justificam a existência de quem responde pelo lado mais novo. Esse hiato não só de anos como de intenções entre duas pessoas que se querem bem, mas que optaram por estilos de vida rigorosamente diversos, mesmo antagônicos, vai apontando para desdobramentos muitas vezes dramáticos de questões que passariam por banais aos olhos insensíveis de um grupo social, e é nessa cadência que marcha “O Retorno de John Henry”, um faroeste pleno de revelações e inconfidências, autorizadas ou não, sobre o tempo, conceito eminentemente subjetivo. Como nem sempre o passado se torna apenas uma pálida lembrança com as incessantes voltas do globo em torno do Sol, questões que poderiam ter sido liquidadas no momento adequado restam imorredouras, se estendem sem qualquer limite e torturam, não só os ofendidos como os próprios ofensores. Lidar com tanto ressentimento, catalisar toda mágoa de modo a transformá-la no combustível pujante que passa a mover uma alma irrequieta e um coração selvagem, mas bondoso, não é para qualquer um. Para tanto, além de um espírito inquebrantável, precisa-se ter disposição para reescrever a própria história, desta vez com as tintas frias da reflexão e da parcimônia, torcendo para que a outra variável da equação admita e valorize o esforço. Com sorte, pode ter sobrado tempo o bastante para zerar o jogo e, quiçá, vislumbrar uma chance de vitória.
Observada a medida exata das coisas, Donald e Kiefer Sutherland se valem do que viveram juntos para dar a “O Retorno de John Henry”, o faroeste que o canadense Jon Cassar rodou em 2015, o verniz de facticidade que é a essência mesma da história, e não faria sentido algum reunir um pai e um filho para além da ficção sem querer extrair dessa particularidade algum ponto que fosse contar a favor da trama. Cassar põe uma lupa sobre o acerto de contas entre o filho marginal e um homem que faz questão de não mascarar seu desgosto e sua revolta quanto às escolhas pouco ortodoxas de quem deveria, no mínimo, honrar o nome paterno. Donald e Kiefer estiveram juntos diante das câmeras pela primeira vez em “A Volta de Max Dugan” (1983) — e o emprego da ideia de regressão não é casual —, de Herbert Ross (1927-2001), momento em que o Sutherland mais novo não passava de um adolescente. Desde então, muita água passou por baixo dessa ponte; Kiefer experimentou o sucesso colossal na televisão ao longo da primeira década deste insano século 21 com produções ligeiras a exemplo de “24 Horas”, de Joel Surnow e Robert Cochran, em que deu vida ao atormentado Jack Bauer, um agente do FBI especializado em ações de contraterrorismo, enquanto ia tateando o espaço à cata de boas oportunidades no cinema. “24 Horas” foi justamente o palco onde Cassar e Kiefer se conheceram, mas a sorte de apresentar uma performance dramaticamente superior só foi bater-lhe à porta em 2011, por uma única vez, quando conseguiu um papel de menor visibilidade no excelente “Melancolia”, de Lars von Trier. Nesse ínterim e depois, voltou a ter de se defender encarnando os tipos um tantorasos de sempre, aproveitando para quebrar boates em confusões homéricas sempre que provocado. Por óbvio, o consumo abusivo de álcool e outras drogas o ajudou a dar vazão a esses instintos mais primitivos e nada artísticos.
O roteiro de Brad Mirman coloca Kiefer como o personagem-título, um veterano da Guerra Civil Americana (1861-1865) que volta a casa depois da morte da mãe, e isso é tudo o que o texto de Mirman nos faculta saber com precisão. Ao finalmente pisar na cidadezinha perdida em algum lugar do Meio-Oeste de século e meio atrás, encontra o pai, o reverendo Clayton, interpretado por Donald, a remoer velhos e justos rancores, principalmente por saber do jeito como o filho ganha a vida. A fama de pistoleiro de John Henry se alastrara por todo o Velho Oeste, e por mais que ele se mostre inclinado a se regenerar, sua reputação e seus fantasmas se encarniçam sobre ele. As ótimas sequências de saloon, em que o protagonista é enxovalhado pelos capangas de James McCurdy, o grileiro inescrupuloso e frio de Brian Cox, suspeitosamente empenhado a desapropriar as fazendas da região para construir uma grande estação ferroviária, servem de prólogo ao banho de sangue a que se assiste algum tempo depois, quadra do enredo em que o protagonista usa seus “conhecimentos profissionais” para fazer algo de pragmaticamente benéfico, ainda que condenável sob a perspectiva moral, pela terra que fora obrigado a abandonar décadas atrás.
O possível envolvimento com Mary-Alice Watson, a namorada que deixou ao partir para a guerra, é tratado com realismo especial. Ótima no papel, ostentando uma beleza madura sem maquiagem e contendo as lágrimas durante a conversa com o ex-pretendente, Demi Moore — cujo desempenho prima mais que somente pela naturalidade, mas é francamente espontâneo, sem defesas — não tem pejo quanto a fazer brotar a acerbidade dessa mulher estoicamente infeliz, resignada com o muito pouco que lhe reservou a sorte. Num dos diálogos mais complexos da narrativa, a personagem quase se desculpa por não ter podido esperar todo o tempo necessário até que John Henry regressasse e se casado com o posseiro Tom de Greg Ellis, miseravelmente desperdiçado. Em seguida, os dois relembram o episódio sobre uma certa fita vermelha que Mary-Alice teria dado ao personagem de Kiefer, que demonstra um presumido menoscabo pelo assunto; como se vê no desfecho, não só John Henry não se esquecera da tal fita como a guardara, até que vislumbrasse a ocasião em que ele, um durão inveterado, pudesse restitui-la a sua dona sem nenhum risco de ser traído pela emoção.
A fotografia de Rene Ohashi exalta os tons de dourado da areia em contraste perfeito com a penumbra dos ambientes fechados, mas a cenografia de Erik Gerlund escorrega feio ao exibir composições chapadas, sem perspectiva, bidimensionais, ambientes que renegam o naturalismo que se vinha observando sob todas as outras perspectivas, visivelmente construídos para um filme, eclipsando um pouco o brilho de uma produção tão bem-cuidada. Relato sobre um homem exilado em sua própria vida, “O Retorno de John Henry” é mais uma prova de que o faroeste, o gênero cinematográfico genuinamente americano, não se esgota. Sempre haverá de existir um personagem como John Henry para atores como Kiefer Sutherland, no Velho Oeste ou mais aquém.
Filme: O Retorno de John Henry
Direção: Jon Cassar
Ano: 2015
Gêneros: Faroeste/Drama
Nota: 9/10