Com chegada da internet, indígena vira influencer e muda vida na aldeia – 12/07/2023 – Zonatti Apps

Com chegada da internet, indígena vira influencer e muda vida na aldeia – 12/07/2023

Moradora de uma pequena comunidade no interior do Amazona que fica a 35 km da capital Manaus, percorridos de barco durante uma hora, a indígena tatuyo Maira Gomes -ou Jūgoa (se pronuncia “rrîgoá” na língua de sua etnia- ainda se lembra de quando escalava árvores para achar algum sinal de celular.

Depois de a internet chegar a sua aldeia, ela viu a vida mudar. Nas redes sociais, virou Cunhaporanga (“moça bonita”, em guarani), conquistou fãs, fez uma participação em filme da Netflix, conheceu a cantora norte-americana Lana Del Rey e até arranjou um namorado carioca. De quebra, passou a ser chamada de estrela por jornais americanos.

A jovem viralizou nas redes sociais ao mostrar cenas da vida de sua família. Hoje acumula 6,7 milhões de seguidores no TikTok, 1 milhão no Kwai e 505 mil no Instagram.

Da chegada da internet ao ‘vocês comem inseto?’

Em 2019, o cacique Piño, o pai de Cunhaporanga, viu uma cena curiosa. A escola que atende a comunidade recebia uma antena. Era a banda larga via satélite chegando.

“Meu pai descobriu o que era e perguntou para o técnico como fazia para instalar em outros lugares”, conta ela a Tilt. Ele acionou a HughesNet, fornecedora da internet, e contratou um plano para sua casa. A ideia era ajuda crianças e jovens com os estudos.

Não tínhamos condições de usar internet. A maneira que a gente encontrava para achar sinal [de celular] era subir uma ladeira ou escalando árvores. Mas durava segundos. Cunhaporanga

Com a pandemia, a conexão foi crucial, porque as aulas passaram a ser remotas, e a casa do cacique virou ponto de encontro dos jovens. “A gente descobriu as redes sociais, criamos perfis em todas elas”, lembra a jovem.

O primeiro vídeo a viralizar no TikTok, com milhões de curtidas em poucas horas, foi uma resposta a uma fã: “É verdade que vocês comem inseto?”.

“Claro que comemos! Quer ver?”, respondeu Cunhaporanga. E na sequência mordeu uma grande larva viva, chamada de mochiva e coletada de troncos de palmeiras. Descartou só a cabeça antes de encher a boca farinha de mandioca. Terminou garantindo que tem gosto de coco.

Postei para mostrar nosso costume. Jamais imaginava que atingiria um público tão alto. Fico muito feliz de saber que, por meio dos meus vídeos, as pessoas conhecem a comunidade. Cunhaporanga

Famosos, mas sem grana

A comunidade abriga cerca de 40 pessoas, de diferentes etnias. Na margem esquerda do rio Negro, a vida gira em torno do curso d’água: pesca, agricultura, cozinha e banho.

É com a visitação, porém, que a aldeia ganha a vida, já que uma das fontes de renda é o etnoturismo. Recebe pessoas que vão ao local para comprar artesanato, como zarabatanas, arco e flecha, flautas e bijuterias de penas e sementes, e ter experiências, desde participar de rituais de música e dança a experimentar comidas típicas e passar alguns dias vivendo como os nativos.

Com a pandemia, as atividades de turismo caíram, e o cacique cogitou cancelar a internet. Estavam famosos, mas sem dinheiro. Com o passar dos meses, porém, as redes sociais se tornaram grandes aliadas.

“Antes só os guias conheciam a comunidade e levavam turistas. Com a divulgação da nossa vida na internet, aumentou muito a procura por gente querendo visitar ou comprar artesanato”, afirma Cunhaporanga.

A presença da conexão não tomou o lugar dos rituais. Ainda há momentos de interagir e contar histórias, e o tempo para usar a internet é controlado. Até os mais velhos usam celular para trabalhar, divulgar trilhas e falar com a família que mora longe. Deu tão certo que hoje há mais um ponto de Wi-Fi, pois seu tio também assinou um plano de internet via satélite.

Netflix, namorado e Lana Del Rey e o sonho da aldeia

A internet também fez Cunhaporanga conhecer outros encantos da vida. Em setembro de 2022, ela estava de passagem pelo Rio para participar das gravações do filme “Ricos de Amor 2”, da Netflix. O longa também foi rodado na comunidade dela.

Durante a viagem, um de seus seguidores, o estudante de educação física Henrique Gil, mandou uma mensagem. Eles se encontraram e viraram a madrugada conversando na praia do Leme. Ela foi embora naquela manhã, mas o papo seguiu. Um mês depois, ela voltou ao Rio, e os dois engataram um namoro.

Em fevereiro deste ano, foi a vez de Gil conhecer a terra natal da namorada. “Ele foi super bem recebido, participou dos rituais, comeu larvas, formigas, rã, experimentou nossa vida na natureza. E adorou tudo”, descreve a jovem. Não sem dor.

O namorado recebeu 13 chicotadas do sogro, o cacique Pinõ, como prova de coragem que marca a passagem para a vida adulta. Agora, ele quer morar de vez na comunidade.

A passagem de Gil pela aldeia coincidiu com outra visita, a da cantora Lana Del Rey, no Brasil para o festival Mita.

“Eu nem sabia quem era Lana Del Rey, mas já tinha ouvido a música dela”, brinca a influenciadora.

Ela conta que um guia chegou dizendo que uma famosa queria conhecer a cultura deles e precisava de dois seguranças da comunidade. Toparam a missão Gil e Pikó, irmão de Cunhaporanga e também é influenciador, com mais de 1 milhão de seguidores no TikTok. Na visita, a cantora participou do ritual, comprou artesanato, aprendeu a usar arco e flecha e, conta a jovem, “até cantou um pouquinho.”

A vida de influenciadora já a fez trabalhar na divulgação de marcas como Mercado Livre e Natura e aparecer na TV Globo e no SBT. Com isso, realizou um sonho da comunidade: construiu um poço artesiano para facilitar o acesso a água limpa.

Sem desconectar das raízes tatuyo

Com milhões de seguidores, a jovem passou a receber comentários e perguntas sobre a vida na aldeia. “Recebo muita coisa em inglês e até parentes distantes, de outras comunidades, mandando mensagens dizendo que a gente os inspirou a fazer o mesmo”, conta. Os “haters”, porém, também chegaram:

Há comentários desnecessários e até ameaças para que eu pare de postar meus vídeos. Até o fato de comer insetos foi criticado, como se pudesse iniciar pandemias como a de covid-19. Cunhaporanga

Além disso, ela enfrenta a sexualização e os estereótipos atribuídos aos indígenas:

Pedem para mostrar meu corpo, dizem que somos preguiçosos. Eu mostro justamente que a gente trabalha bastante. Pode não ser em uma empresa numa grande cidade, mas somos agricultores, fazemos farinha, artesanato, turismo. Cunhaporanga

Como qualquer jovem, Cunhaporanga também posta dancinhas, participa de trends, dubla vídeos e usa filtros. Tudo a partir de seu iPhone. Inicialmente, os mais velhos da aldeia temeram que a exposição fizesse os jovens se desconectaram das raízes tatuyo. Até seu pai, o grande incentivador da conectividade, a aconselhou a tomar cuidado.

Lidamos bem com isso, nosso costume é respeitar todo mundo e responder educadamente. “Meus pais apoiam que eu tenha laços com outras pessoas. Sabem que nunca vou abandonar minha cultura. Acabei virando uma influencer e meu grande objetivo é mantê-la viva. Quero também que outros povos divulguem sua história para o mundo. Cunhaporanga

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