Quando viu as velas acesas do bolo de seu aniversário de sete anos, Wilson Andrade não conseguiu segurar o choro ao perceber que, pela primeira vez, sua mãe, pai e avós não estavam ali para cantar os parabéns. Três meses antes, o menino havia perdido quase toda a família em um deslizamento que atingiu a casa em que morava em Petrópolis, no Rio de Janeiro.
Ainda nos primeiros anos de vida, ele se tornou uma das milhares de crianças brasileiras que têm tido o desenvolvimento colocado em risco após serem vítimas de desastres climáticos. Órgãos internacionais, como a ONU, têm alertado que o país vai enfrentar uma crise de direitos da infância nos próximos anos, já que eventos extremos devem se tornar mais frequentes.
Em poucos segundos, naquele 15 de fevereiro de 2022, uma enxurrada de água e lama tirou de Wilson seus brinquedos, suas roupas, a casa, os avós e os pais. E mais, deixou ainda um rastro de consequências com as quais vai ter que lidar a vida toda.
Apesar do trauma, o menino, hoje com oito anos, não recebeu nenhum apoio do poder público para minimizar as perdas que teve na fase considerada a mais importante para o desenvolvimento do ser humano, a primeira infância (de zero a seis anos).
Evidências científicas apontam que neste período que o cérebro se forma mais rapidamente, sendo mais sensível aos cuidados e estímulos ambientais. Assim, crianças que não tiveram assegurado um ambiente seguro e acolhedor nesta fase podem ter seu desenvolvimento físico, cognitivo e socioemocional comprometido.
“Situações de risco, como a de um desastre climático ou a perda dos pais, ameaçam o desenvolvimento infantil. Episódios como esse submetem a criança a um estresse tóxico, que altera a fisiologia, o psicológico e todas as relações sociais dessa criança. Ou seja, todas as áreas do desenvolvimento dela estão sob ameaça”, diz Maria Beatriz Linhares, professora do departamento de neurociências da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.
A especialista, que é também pesquisadora do NCPI (Núcleo Ciência pela Infância), explica que o estresse vivido em um desastre climático não pode ser apagado da memória da criança, mas pode ter seus efeitos mitigados, com uma série de medidas de proteção.
“Essas crianças já não tiveram seu direito à proteção e moradia digna assegurados. Depois que o desastre já aconteceu e elas foram colocadas em risco, o poder público tem, no mínimo, a obrigação de garantir fatores protetivos para minimizar as consequências.”
Quase dois anos após as chuvas que mataram 241 pessoas na cidade, Wilson não foi incluído na lista de famílias que recebem auxílio-aluguel nem a compensação financeira pela perda da casa. Também não recebe atendimento psicológico.
“Estou até hoje tentando entender como uma criança perde tudo da noite para o dia e não tem direito a nada. Por que adultos recebem ajuda financeira, mas uma criança não recebe nada? Nem financeira nem psicológica. Tudo o que ele tem é a nossa ajuda, nós que também estamos tentando superar o trauma”, conta Amanda de Oliveira, 35, que adotou Wilson e o irmão mais velho, Sidnei, hoje com 18 anos.
Vizinha da família, Amanda também ficou desabrigada no desastre. Ainda assim, adotou os irmãos que conhecia desde pequenos. A decisão foi tomada depois de um tio dos meninos dizer que só ficaria com um deles. “Eles já tinham perdido tudo, eu não podia aceitar que eles ainda fossem separados. Eu não tinha nem casa na época, estava vivendo na minha sogra, mas adotei os meninos para que eles ficassem juntos.”
É para a cama do irmão que Wilson corre quando começa a chover de noite e não consegue dormir. O medo não é sem razão, já que a nova casa fica a poucos metros do ponto que desabou sobre seu antigo lar.
“Quando começa a chover, ninguém dorme aqui em casa. Fica todo mundo aflito e tenso, eu fico pensando como isso pode afetar a cabeça de uma criança tão pequena, como o Wilson. Alguns efeitos já dão para ver, tem dias que ele está muito irritado e agressivo. Em outros, fica quieto, não fala com ninguém”, conta Amanda.
Os efeitos também são percebidos fora de casa. Wilson teve crises de choro na escola, se afastou dos colegas e tem tido dificuldade para aprender a ler e escrever. “Várias crianças da sala dele também foram vítimas dessa tragédia, mas nenhuma perdeu tanto quanto ele. E a escola não consegue dar uma atenção maior, que seria importante para ele neste momento.”
Para especialistas, o número crescente de crianças afetadas por desastres climáticos e os diversos efeitos em cada uma delas vão agravar ainda mais as desigualdades sociais do país nos próximos anos. O Unicef estima que 40 milhões de meninos e meninas brasileiras já estão expostos a mais de um risco climático ou ambiental —e os mais atingidos são os mais pobres.
“Precisamos entender que a crise climática é uma crise do direito das crianças e adolescentes, no sentido de que todos os direitos fundamentais delas estão ameaçados diante das mudanças climáticas”, diz Danilo Moura, oficial do clima e meio ambiente do Unicef.
Em outro ponto da cidade, no Morro da Oficina, o epicentro do desastre em Petrópolis, o menino João Arthur de Lemos, 6, também enfrenta dificuldades na escola, tanto de convivência quanto de aprendizagem. Ele estava dentro de casa com a mãe e o irmão mais velho quando o imóvel foi atingido por uma onda de lama.
“Ele não dorme se estiver chovendo, não coloca nem pijama ou tira o tênis. Parece que está pronto para sair correndo a qualquer momento. O que eu mais queria era que meu filho se sentisse seguro, mas ele parece viver o tempo todo dentro daquele dia, lidando com os efeitos do trauma”, conta Sabrina Gonçalves, 34, mãe do menino.
João fez apenas algumas sessões com psicólogo, mas não conseguiu continuidade no tratamento na rede pública. A dificuldade em acompanhar fez com que as professoras levantassem a hipótese de que ele tenha algum transtorno, mas a família não consegue confirmar o diagnóstico por não ter acesso a atendimento psicológico especializado.
Para Maria Beatriz, o estado constante de alerta vivido por Wilson e João Arthur pode significar um quadro de estresse pós-traumático. Ela explica que, quanto mais cedo um evento traumático é vivenciado, maiores podem ser as consequências —ainda mais sem acompanhamento psicológico.
“Essas crianças estão em estado de alerta constante, achando que algo de ruim vai acontecer com elas a qualquer momento”, diz a especialista. “Quando estamos em estado de hipervigilância, o coração bate mais acelerado, a respiração é mais curta, o que leva à exaustão, dificuldade de concentração e de sociabilização.”
A Prefeitura de Petrópolis diz ter garantido, nos primeiros dias após o desastre, atendimento psicológico especializado nos abrigos e que o acompanhamento segue sendo feito para aqueles que foram identificados com sinais de estresse pós-traumático. A administração não respondeu, porém, sobre a situação dos dois meninos.
Também afirmou que lançou neste ano o programa Recomeço Seguro, que prevê o pagamento de compensação financeira para 212 famílias que vivem em casas em áreas consideradas de alto risco. As famílias de João Arthur e Wilson não estão entre os contemplados.
Segundo a avaliação da prefeitura, a família de João Arthur só se enquadra nos critérios para receber o aluguel social, no valor de R$ 800 ao mês.
Já os irmãos Wilson e Sidnei não têm direito a nenhum dos dois auxílios. Segundo a prefeitura, eles não vão receber nenhum apoio financeiro, porque a mãe deles, morta no desastre, foi contemplada com uma unidade habitacional do município, em 2020.