Num belo dia — na maior parte das vezes nem tão belo assim —, todos nós nos defrontamos com nós mesmos. Não raro, como reza o clichê, nos postamos defronte ao espelho, respiramos fundo e buscando no mais íntimo de nós a coragem que não nos deixa arrefecer diante de tamanho desafio, nos fazemos a pergunta matadora: “o que quero para a minha vida?”.
No caso dos atores — e, sobretudo, dos atores que começam ainda muito cedo no ofício —, essa indagação tão particular, tão visceral mesmo, tem de ser respondida de maneira peremptória, a fim de não se jogar fora anos de trabalho duro, sempre escrutinados com olhos de lince pelos críticos, as bêtes noires que vampirizam o elã alheio e vivem para invejar atores, mormente os bem-apanhados, mesmo que já entrando em anos. Timothée Chalamet decerto teve seu dia de Rainha Má da Branca de Neve, e seu espelho não deve lhe ter mentido.
Acontece que Chalamet é muito mais que um menino bonito, como deixa claro sua filmografia. Ao longo de mais de duas dezenas de trabalhos na tela grande, o franco-americano sempre se apresentou de maneira impecável, em papéis que ressaltavam sua aura aristocrática, ainda que o lado mais, digamos, povão do personagem sobressaísse. Em “O Rei” (2019), dirigido por David Michôd, coautor do roteiro com Joel Edgerton, também presente no elenco, o nobre recebe uma merecida promoção e se torna ninguém menos que o soberano da Inglaterra.
Para a confecção do texto de “O Rei”, Michôd e Edgerton tomaram por base as peças clássicas de William Shakespeare (1564-1616) que retratam o período em que Henrique 5° (1386-1422) permaneceu à frente do reino inglês. Certamente Chalamet tem uma aparência muito mais harmoniosa que a figura que representa — mormente se tratar de uma história passada em pleno medievo, um tempo em que era banal se morrer de tifo, cólera, varíola, ou em se durando um pouco mais, apresentar na carne as sequelas de tamanho atraso civilizatório (o próprio Henrique 5° não foi muito longe, e morreu a dezesseis dias de completar 36 anos, de disenteria [!], ao que apontam os historiadores, e Elizabeth I [1533-1603] tinha o rosto tão desfigurado por cicatrizes de uma doença dermatológica que era obrigada a usar várias camadas de maquiagem, como se assiste em “Duas Rainhas” [2018], de Josie Rourke) —, mas em algumas gravuras da época, a semelhança entre os dois se faz notar.
Cria do teatro, Timothée Chalamet se assemelha muito mais a Laurence Olivier (1907-1989), Colin Firth e Malcolm McDowell, grandes nomes dos palcos britânicos nessa ordem, não por acaso os três célebres por darem vida a monarcas. Em “O Rei”, talvez lembre mais o maior deles, Olivier, pela transição incompleta de rapazote inconsequente a homem movido por um ideal. Como se sabe, esse ímpeto de Hamlet é tomado por seu aspecto negativo, ou pelo que Freud denomina de pulsão de morte, e o príncipe da Dinamarca acaba levando a breca. Henrique 5°, e seu intérprete o evidencia, é um homem muito mais equilibrado e torna-se um chefe de Estado digno, atento às demandas de seu povo e que dispensa aos inimigos tratamento humanitário, malgrado a Inglaterra esteja encharcada até o osso na lama da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), combatendo a França aproveitando-se do vácuo de poder surgido com a morte de Carlos 4°, o mandatário gaulês, em 1328. A esse propósito, o diretor encena com realismo espantoso os muitos enfrentamentos entre os dois exércitos, com destaque para as sequências que registram a Batalha de Azincourt, em 25 de outubro de 1415, decisiva para a Inglaterra, coreografada de modo a valorizar os golpes de espada contra armaduras cuja resistência tinha limite.
Shakespeare era um autor de alcance popular amplo, e “O Rei” capitaliza esse seu predicado. Acertadamente, o filme prescinde do inglês elisabetano, mesmo que se valha de uma forma meio afetada do idioma, o que cai muito bem numa narrativa cuja proposta original é se debruçar sobre o legado de um dos maiores representantes da monarquia da história da Inglaterra (por excelência a terra de reinos cerimoniosos em demasia), morto há seiscentos anos. Joel Edgerton, corroteirista da produção se mostra convincente na pele de Falstaff, um conselheiro de Henrique 5° saído da pena do Bardo, mas não se pode dizer o mesmo de Robert Pattinson, artificialmente farsesco como o delfim da França.
Trocando em miúdos, o grande trunfo de “O Rei” é Timothée Chalamet. Com a devida vênia, poder-se-ia dizer que tal como “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), de Luca Guadagnino, o filme de David Michôd igualmente se presta a uma espécie de coming-of-age de Chalamet, com a diferença de aqui ele já ter se revestido do couro grosso exigido para um trabalho dessa envergadura e não ser mais um garoto lânguido e inseguro sofrendo por amor — e essa é uma mandraca de que pouca gente na profissão que escolheu é capaz. Vida longa a Timothée Chalamet, que continua dando o que falar agora em outras dimensões, como se vê em “Duna” (2021), de Denis Villeneuve.