Proibição da mutilação genital vê resistência na Gâmbia – 19/11/2024 – Equilíbrio e Saúde – Zonatti Apps

Proibição da mutilação genital vê resistência na Gâmbia – 19/11/2024 – Equilíbrio e Saúde

As meninas estavam sentadas ao sol da tarde, perto de músicos e dançarinos. Pratos de comida variada estavam sobre uma mesa ao lado de velhas facas artesanais e lâminas de barbear novas e brilhantes.

Para as 30 mulheres praticantes da tradicional mutilação genital feminina, o evento era parecido com as festas de mutilação em massa que elas e seus ancestrais fazem há séculos na Gâmbia, nação da África ocidental.

Essas mulheres cortadoras eram praticantes proeminentes em suas comunidades, e a mutilação de meninas lhes proporcionava renda e respeito.

Mas a festa, em 2013, na cidade de Wassu, teve outro significado: era a renúncia dessa vocação. As mulheres carregavam cartazes que diziam: “Parei de fazer a mutilação genital feminina”, abaixo do desenho do rosto de uma menina manchado de lágrimas. Elas juraram nunca mais cortar uma garota. Uma por uma, largaram as facas e lâminas de barbear em um pano vermelho bordado com conchas de cauri (uma espécie de molusco). Para essas mulheres, foi o fim de uma prática antiga, socialmente importante –e, para muitas, horrível.

Ou será que não?

Uma das 30 cortadoras presentes naquele dia, uma avó chamada Yassin Fatty, mais tarde se tornaria a primeira cortadora gambiana a ser condenada por mutilação genital feminina.

A Gâmbia aprovou uma lei proibindo a prática em 2015, mas durante anos ela não foi aplicada, e muitos gambianos continuaram a apoiar a mutilação. Quando Fatty foi presa por cortar meninas e condenada, no ano passado, houve uma reação nacional.

Então Fatty, de 96 anos, acabou posicionada entre dois homens: um imã (sacerdote do islamismo) famoso que queria legalizar o corte novamente e um ativista anticorte cuja motivação para o combate à tradição não era muito clara.

As meninas sempre foram cortadas em Bakadaji, vila na região de Central Rivers, na Gâmbia, onde Fatty nasceu. Esta contou que costumava cortar as meninas em um banheiro ao ar livre e imediatamente depois as levava para a sala de paredes ásperas e sem pintura, onde nos sentamos para ter nossa conversa.

Na Gâmbia, a mutilação genital feminina, em geral, significa remover o clitóris e parte dos pequenos lábios e, às vezes, selar a vagina, exceto por um pequeno orifício. Para quem vê isso de fora, parece indizivelmente cruel. Mas muitos aldeões gambianos veem as meninas que não são cortadas como impuras e não religiosas. Muitas delas se tornam párias sociais.

Corte em segredo

Momodou Keita é um homem corpulento na faixa dos 50 anos, conhecido por suas décadas de luta contra a mutilação genital feminina. Percorria a região de Central Rivers em sua motocicleta, persuadindo cortadoras como Fatty a largar a faca e convidando as mulheres para participar de eventos contra a mutilação promovidos pela organização para a qual trabalhava, o Comitê de Práticas Tradicionais da Gâmbia que Afetam a Saúde de Mulheres e Crianças, conhecido como Gamcotrap.

Keita inscreveu centenas de cortadoras ao longo dos anos, segundo ele mesmo revelou. Cada mulher recebeu dinheiro para começar um novo negócio e ter uma fonte de renda alternativa. Fatty conseguiu recursos para começar uma padaria, o que acabou rendendo um bom dinheiro para a família.

Antes de comparecer à cerimônia de largar a faca, Fatty assistiu a um vídeo sobre as consequências da mutilação para a saúde das mulheres. Participou durante alguns dias de um programa de conscientização sobre mutilação organizado pela Gamcotrap. Mas isso foi pouco para fazê-la mudar de ideia.

Depois que recrutou e educou as mulheres, Keita fez com que informantes ficassem de olho em cada uma delas. No fim de 2022, estes relataram que algo estava acontecendo em Bakadaji. Fatty ia cortar oito meninas. Keita foi até a casa dela e a alertou para não prosseguir.

Mas, em 16 de janeiro de 2023, um informante ligou novamente. O corte seria feito naquela manhã. Keita pulou em sua moto e foi até a vila, mas chegou tarde demais. Fatty já havia cortado duas meninas. Keita, então, chamou a polícia.

Fatty ganhara uma padaria para se afastar do corte, que se presumia que praticava para ganhar dinheiro. Mas ela disse que o considerava uma crença, e a ameaça de processo significava pouco para ela. Mesmo depois da cerimônia em que aceitou largar a faca, ainda cortava meninas secretamente.

Segundo especialistas, muitas praticantes agora estão cortando em segredo, e mutilando meninas mais novas, que são menos propensas a se lembrar do fato. Em 1991, as meninas gambianas eram cortadas em média aos quatro anos; agora, geralmente têm menos de dois anos, como mostram estimativas da Organização das Nações Unidas.

Apesar dos milhões de dólares gastos por agências da ONU e por doadores americanos e europeus em programas para coibir a mutilação genital feminina na Gâmbia, e embora esta seja ilegal desde 2015, quase não houve mudança na taxa desse tipo de prática, que atinge 73% das meninas de 15 a 19 anos.

O primeiro caso de condenação da mutilação genital feminina na Gâmbia

Quando a polícia chegou, prendeu Fatty e as mães das duas bebês que Keita encontrou gritando e sangrando na casa da cortadora.

Para quem estava de fora, Keita parecia o autor de um gesto heroico: o homem que dedicou sua vida a combater a mutilação, dramaticamente, pegou Fatty em flagrante e, assim, segundo ele mesmo disse, salvou várias meninas de serem cortadas.

Mas Fatty e seu filho Abdou Cham afirmaram que Keita é uma fraude –que ele nunca se importou em proteger as meninas e que, em uma ocasião, disse a elas que pegassem o dinheiro dos ocidentais e fizessem o que quisessem. Keita negou essa acusação. Mas Cham se lembrou de Keita dizendo à mãe: “A circuncisão não pode ser erradicada nesta área. Você pode fazer isso em segredo. Ninguém vai descobrir.”

Do ponto de vista deles, Keita estava apenas interessado no dinheiro –e foi por isso que se agarrou à campanha financiada pelo Ocidente contra a mutilação.

Cham e dois parentes do sexo masculino disseram que, na delegacia, enquanto Fatty esperava para ser autuada, se confirmaram as suspeitas que tinham sobre ele. Keita os abordou, segundo revelaram, propondo “abafar o caso” em troca de suborno. Obedeceram, dando a ele 5.500 dalasi (cerca de US$ 80). A filha adotiva e cuidadora dedicada de Fatty, Mariama Souso, garantiu ter visto o dinheiro passar de uma mão para outra.

Em uma entrevista, Keita negou ter solicitado ou aceitado qualquer suborno. Mas um funcionário familiarizado com o caso, que falou sob condição de anonimato para evitar represálias, confirmou o relato da família. Keita foi acusado de obter dinheiro sob falsos pretextos, mas essas acusações foram retiradas posteriormente. E, no fim das contas, Keita não abafou o caso. Em agosto, Fatty e as duas mães das meninas mutiladas foram a julgamento. As três se declararam culpadas e cada uma pagou uma multa de 15 mil dalasi (cerca de US$ 215).

Os custos de todo o processo quase levaram os familiares de Fatty à falência. Eram trabalhadores na agricultura de subsistência. Mas o julgamento também atraiu a atenção de um poderoso parente distante.

Abdoulie Fatty, um dos imãs mais conhecidos da Gâmbia, ficou indignado quando soube a que sua prima de 96 anos fora submetida e deu início a uma campanha séria para que todo o país descriminalizasse a prática da mutilação, usando as dificuldades de sua parente como um grito de guerra.

O debate nacional resultante teve alguns efeitos surpreendentes na conservadora Gâmbia, que é 96% muçulmana. Subitamente, nas áreas urbanas, as pessoas começaram a falar abertamente sobre clitóris e desejo sexual feminino.

Em vilas como Bakadaji, e para as famílias mergulhadas na tradição, a mensagem do imã aumentou a impressão de que a mutilação era sancionada pelo islamismo –algo que muitos clérigos e acadêmicos muçulmanos dizem não ser verdade.

O imã mudou a sorte financeira da família de Yassin Fatty. Pagou as multas das três mulheres e repassou para elas doações de alguns de seus seguidores. Parte dos recursos foi usada para construir um muro de concreto ao redor de onde Yassin Fatty costumava cortar as meninas.

O apoio encorajou Fatty. Mas sua prisão e seu julgamento a enfraqueceram. A família duvidava que ela voltasse a cortar. Seria o fim de uma longa era. Fatty herdou sua vocação de praticantes tanto do lado de sua mãe quanto do lado de seu pai. “Agora, sou a única que sobrou”, ela disse.

Mas, então, confidenciou algo, apontando para Souso, sua filha adotiva, que ela escolhera como sucessora.

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