Terminei o ano chamando sua atenção, leitor, para o problema que se tornou a alta velocidade com que geramos tecnologia. O problema não está na tecnologia em si (pois por definição tecnologias resolvem problemas mais rápido e liberam tempo para fazermos outras coisas); o problema está em fazermos uso da tecnologia apenas para nos manter ocupados. Se inteligência é flexibilidade e decisões inteligentes são aquelas que nos mantêm flexíveis, então usar telas para liberar tempo para então apenas ocupá-lo usando telas e não ter tempo livre para novas ideias e possibilidades é um tanto… burro.
Como é um tanto burro, também (de novo, pela minha definição), empenhar tanto tempo, recursos e energia para gerar mais tecnologia que não acrescenta nenhuma capacidade nova, que não resolve nenhum problema novo. Esta é minha birra quando entro em lojas de eletrodomésticos: precisamos realmente de aparelhos com cada vez mais botões para resolver o mesmo problema de base que é soprar vento, liquidificar frutas e legumes ou esquentar comida?
A raiz da minha birra é que o progresso da humanidade não está nos aparelhos que fazemos ou nos dados que coletamos, mas nos problemas que aprendemos a identificar, entender, e então resolver. Fazer tudo isso é ocupação dos cientistas —mas também a ciência, a meu ver, anda sofrendo do problema de excesso de encantamento com a tecnologia, usando tecnologia porque tem, e não porque precisa, para gerar quantidades colossais de informação que ninguém tem tempo para transformar em conhecimento.
Dados são informação, mas informação só vira conhecimento quando serve para alguma coisa: quando resolve algum problema. Ainda assim, nosso encanto com as novas tecnologias que geram quantidades burrais de dados é tanto que agora existe “data science”, ou ciência de dados, que é a tentativa de gerar tecnologia para fazer o que cientistas fazem cada vez menos, que é… transformar informação em conhecimento.
Ou seja: quando tínhamos tempo para olhar o mundo e fazer perguntas, coletamos informação e geramos tanto conhecimento sobre o mundo que aprendemos a automatizar a coleta de dados, e geramos tantos dados que agora não temos mais tempo para transformá-los em conhecimento, então aspiramos a automatizar também a produção de conhecimento. Estamos investindo em um processo construído sobre o princípio da eliminação dos interesses e vieses e valores humanos —mas que sentido tem o conhecimento, senão resolver os problemas que nos interessam?
Veja o caso de boa parte da ciência biológica: elencar todos os genes expressos individualmente em cada célula do cérebro ou o órgão da sua preferência agora é possível, então os cientistas competem por automatizar a coleta desses “transcriptomas”, que viraram praticamente requisito para publicação em revistas como Science e Nature. Acontece que só os jovens que publicam nessas revistas conseguem emprego como cientistas, então o futuro da ciência se torna cada vez mais laboratórios coletando transcriptomas e afins.
E fazendo o que com eles? Não muito, porque não sobra tempo para fazer perguntas. Para ter tempo para fazer perguntas e transformar tantos dados em conhecimento, é preciso não entrar na corrida —mas o jovem que fizer isso dificilmente vai conseguir emprego como cientista.
Tenho pena dos jovens cientistas.
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