Gravar a reação de crianças pequenas sobre qualquer assunto e saber quanto de informações colhidas no mundo adulto elas ocultam é sem dúvida uma tentação para pais e cuidadores. Contudo, a “trend do palavrão”, em que os pais “liberam” os filhos para gravarem sozinhos em frente ao espelho as “palavras feias” que sabem não é um recurso pedagógico ou emocional saudável.
A postagem dos vídeos na internet piora a situação, uma vez que expõe os pequenos ao julgamento público. Segundo especialistas ouvidos pela Folha, os cliques e visualizações gerados nesses posts não valem o dano que podem causar.
A psicóloga infantil Patrícia Leila dos Santos, professora da USP (Universidade de São Paulo), reforça que em um processo de formação os pequenos ainda não têm habilidades cognitivas ou emocionais para definir que a situação inesperada e momentânea proposta pelos pais é de fato uma brincadeira.
“Temos trabalhado muito as questões de relacionamento de comunicação não violenta, de respeito às pessoas, e então você vê uma situação em que pais incentivam as crianças a um comportamento fora do que socialmente nós esperamos que tenham. Isso já cria uma confusão na cabeça delas”, afirma a professora e pesquisadora.
Santos lembra que esses conteúdos vão também atingir outras crianças e adolescentes, sendo que muitas vezes até adultos têm dificuldade de lidar com algumas questões geradas pelas redes.
A autorização para gravar um vídeo falando palavrões, portanto, pode abrir caminho para algo que prejudique o desenvolvimento social, emocional e das relações com o outro. “Em termos de educação familiar, dos pais educadores, o que [essa proposta] está ensinando para essa criança? Que regra é essa que de repente, quando você estiver sozinho, você pode pegar o celular e gravar um vídeo xingando e ele vai parar uma rede social?”, avalia Santos.
A professora diz que o uso de uma linguagem menos polida quando se está irritado e sozinho não é necessariamente ruim, mas o contexto e a exposição fazem a diferença. “Se eu estou brava e, para não agredir o outro, entro lá no cantinho, vou debaixo do chuveiro, e solto meu grito, xingo comigo mesmo, é diferente de expor isso para o mundo, quando estou falando palavrões para várias pessoas ao mesmo tempo”, aponta a psicóloga infantil.
A reação do outro, aliás, é algo que não se pode controlar e assim como alguns serão indiferentes ao vídeo, outros vão se indignar ou rir, em uma leitura que a criança pode receber como deboche.
“O que eu vejo acontecer muitas vezes é que as famílias, independentemente de estarem gravando ou não, riem quando a criança fala um palavrão. Acaba passando que isso foi legal, reforçando esse tipo de comportamento. E quando ela leva isso para a escola, vira um problema que volta para a própria família, porque a escola vai chamar para dizer que está xingando o coleguinha, mostrando o dedo do meio”, destaca Santos.
E o que em um momento é fofo e engraçadinho, com o passar do tempo, vai se tornar um motivo de cobrança. “As pessoas vão exigir que ela tenha um outro comportamento e fica muito difícil para criança, que começa a ser punida por algo que, mesmo ocasionalmente, foi trazido lá atrás pelos pais. Por isso não chamaria esta trend de brincadeira, pode ser muito negativa”, alerta.
A psicopedagoga e orientadora parental Andreia Rossi diz que o problema também envolve a rapidez com que os vídeos de trends viralizam. “Não tem nada de positivo para o desenvolvimento infantil ou para aquisições de habilidades de uma criança. É uma trend na qual os adultos estão usando modelos depreciativos e recursos inapropriados para aumentar engajamento e visualização”, diz Rossi.
O que parece, portanto, bonitinho, na verdade é bastante depreciativo para os rostinhos que aparecem no vídeo. “Cuidadores devem ser modelos. Colocar a criança falando palavrão e filmar é uma diversão unilateral, pura e exclusiva do adulto, porque a criança não faz ideia do que está acontecendo”, afirma a psicopedagoga.
A aprovação de falar palavrão desregula o emocional e pode gerar insegurança em relação à proteção que os pais e cuidadores deveriam dar aos filhos. “A criança não consegue transitar de forma organizada sobre o que pode e o que não pode. Ela vai ser reprimida e, muitas vezes, punida, então esse modelo não é adequado, muito menos produtivo para o desenvolvimento infantil. Nós precisamos oferecer recursos assertivos”, aponta Rossi.
A psicóloga Camila Britto, especialista em terapia cognitivo-comportamental, lembra que as reações vão variar conforme a personalidade mais extrovertida ou introvertida de cada criança.
“Desde que não haja um constrangimento, pode ser que não crie grandes repercussões. Mas acho importante que todos nós fiquemos atentos a um ponto bem importante que é o uso da imagem da criança para gerar entretenimento e likes nas redes sociais. A internet atinge um público muito aberto e os conteúdos postados ali podem ir parar em lugares indesejáveis”, afirma Britto.
A psicóloga reforça ainda que a criança é um sujeito de direitos e não deve ser exposta. “Como é mostrado em alguns vídeos que estão circulando nas redes sociais, a criança fica claramente confusa, e podem surgir também alguns sentimentos de medo ou mesmo empolgação. Se pensarmos na questão comportamental, sempre que reforçamos algo que a criança faz, seja elogiando ou rindo, existe maior probabilidade de ela repetir esse comportamento”, frisa.
A infância é um momento muito delicado da formação e vai gerar os futuros adultos da sociedade, o que exige uma postura muito ética de quem cuida em relação às crianças.
“O que é engraçado para alguns pode significar para a criança uma situação na qual ela se sente confusa e desconfortável. E acredito que não é isso que os cuidadores querem para seus filhos. Algumas brincadeiras de internet, as trends, porém, são repetidas sem nenhuma reflexão: ‘se todos fazem, também vou fazer, o que pode ter de errado?’”, pondera a especialista.
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