No mundo cada vez mais imediatista da inteligência artificial (e dos dispositivos móveis em particular), quinze anos podem ser a diferença entre a Era Mesozoica e os carros voadores que nunca saíram do papel ou da mente delirante da sonhadora geração Y — ou xennial, zona cinzenta entre a geração X e os disputados millennials, a depender da fonte —, que não faziam ideia de como seria viver num mundo hiperconectado.
A luz dourada da fantasia já banhava as mentes privilegiadas de quem nasceu quarenta anos atrás, e mesmo antes, mas, nos Estados Unidos, a urgência de fazer o primeiro milhão era o que movia uma legião de nerds espinhentos e solitários a decifrar o enigma da comunicação online, atmosfera de que “BlackBerry”, no Prime Video, está imbuído até o último bit.
O filme de Matthew Johnson junta-se ao clube inaugurado por Oliver Stone com “Wall Street” (1987), do qual também fazem parte “O Sucesso a Qualquer Preço” (1992), dirigido por James Foley; “O Primeiro Milhão” (2000), levado à tela por Ben Younger, e “O Lobo de Wall Street” (2013), de Martin Scorsese, tratando de vilões yuppies e mocinhos desleixados do mercado de tecnologia de um jeito um tanto binário, com a licença do trocadilho, e compensando possíveis imprecisões factuais, próprias dos assuntos que a Justiça mantém longe do cidadão-contribuinte, com performances certeiras.
A voz rouca das ruas consagrou que ninguém conhece a receita do sucesso, mas que para fracassar é muito fácil: basta querer agradar todo mundo. Cada homem é um universo particular, com suas ideias próprias, suas vontades próprias, necessidades as mais íntimas, tantas expectativas acerca da vida, ainda que saiba que pode nunca chegar a alcançá-las.
Para o homo sapiens, a espécie mais curiosa encontrada sobre a Terra, é extremamente difícil submeter-se a regramentos contrários a sua formação contestatória. Malgrado fundamental para a vida em sociedade, a fim de suportarmo-nos uns aos outros, enquadrar-se não tem quase nada de prazeroso. O homem apenas reflete a própria natureza, de que também é parte, indisciplinada, selvagem, caótica.
Aceitar o mundo como o conhecemos, ao mesmo tempo em que temos a capacidade de rumar para outras vidas, em que as circunstâncias mais absurdas são o que pode haver de mais corriqueiro, sempre foi uma constante na vida do ser humano, que se vale do artifício a fim de, em largando tudo, abandonar sua própria vida e acessar o mais obscuro de seu espírito, no intuito de apreender o cenário em que está inserido e, assim, conduzir sua vida de uma maneira mais adequada. Por óbvio, surgem percalços no caminho, as coisas saem do terreno do previsível e os enfrentamentos são inevitáveis.
Em 2015, os jornalistas Jacquie McNish e Sean Silcoff lançaram “Losing the Signal” (“perdendo o sinal”, literalmente, sem edição em português). O roteiro de Johnson, McNish e Silcoff transforma as páginas do livro numa compilação de episódios que contam as aventuras e, mais importante, as desventuras dos canadenses Mihal “Mike” Lazaridis e Douglas Fregin, parceiros na empreitada (que hoje todos sabemos malsucedida) de criar um telefone portátil que também enviasse correspondência eletrônica.
O grande segredo para que o aparelho operasse sem problemas era desenvolver uma rede poderosa o bastante para admitir várias linhas funcionando ao mesmo tempo — guarde essa informação para quando chegar ao epílogo; ela será de grande valia. Na pele de Fregin, Johnson, o narrador onisciente da história, explica como a solução de um problema de matemática aplicada degringola numa das maiores sabotagens do capitalismo — e, verdade seja dita, ele e o parceiro, vivido por Jay Baruchel, saborosamente absurdo em seus cabelos tingidos de branco, eram gênios, não magnatas. Vieram os coreanos e Steve Jobs (1955-2011) e o resto é silêncio. Para eles.
Filme: BlackBerry
Direção: Matthew Johnson
Ano: 2023
Gêneros: Comédia/Biografia
Nota: 8/10