O teste genético para saber se uma pessoa tem chances de desenvolver câncer é feito a partir da coleta de uma simples amostra de sangue ou saliva e pode salvar mais de uma vida —a do paciente e a de todos que compartilham com ele o mesmo histórico genético. O procedimento existe há cerca de uma década, mas, de acordo com especialistas da área, houve um avanço expressivo no entendimento sobre os códigos revelados, permitindo resultados mais rápidos e um tratamento preventivo mais preciso.
“O que mudou foi a leitura dos genes, que se tornou mais completa. Lemos [agora] parte dos genes que antigamente não conseguíamos. Além disso, como mais pessoas estão fazendo o teste, conhecemos um maior número de mutações e podemos classificá-las melhor”, afirma a médica Bruna Zucchetti, oncologista especialista em câncer de mama do Hospital Nove de Julho
A profilaxia nesses casos vai desde o uso de medicações que agem especificamente sobre o tipo de mutação encontrada até a indicação de cirurgia redutora de risco. No caso de mutações BRCA1 e BRCA2, por exemplo, o médico pode solicitar a remoção de ovários (ooforectomia), glândulas mamárias (adenomastectomia), tubas uterinas e útero (histerectomia) para evitar o desenvolvimento de um câncer agressivo.
A mutação de BRCA 1 e 2 pode ser apresentada por homens e mulheres, sendo indicativos de risco genético para câncer de mama (masculino e feminino), ovários, pâncreas e próstata.
“O teste genético não faz diagnóstico de câncer. Nas pacientes que já têm [a doença], é feito para orientar o seguimento e a necessidade de cirurgias profiláticas para reduzir o risco de novo câncer”, diz Zucchetti.
O exame, portanto, ajuda a definir o melhor tratamento e orienta a testagem de outros membros da família. Foi o caso da designer de interiores Jacqueline de Souza Murad Praxedes, 59, cuja irmã mais velha descobriu um câncer de ovário avançado.
“Eu, minha irmã e sobrinhas fizemos o exame genômico em 2021 e deu positivo para BRCA1. Todas tiramos úteros e ovários”, conta Praxedes.
A designer, mesmo na menopausa desde 2016, vinha apresentando sangramentos constantes, mas ainda não tinha indicativos de câncer em seu quadro. O resultado da biópsia após a remoção, porém, mostrou que ela já estava com um pequeno tumor maligno na trompa que não aparecia ainda em exames de imagem.
“Em seguida, fiz quimioterapia injetável e, após o término, quimioterapia oral por dois anos. Estou bem, faço exames regularmente e, com as bênçãos de Deus, no final do tratamento estarei totalmente curada”, diz a designer.
A irmã dela, infelizmente, não teve a oportunidade de tratar preventivamente e morreu há um ano, mas sua jornada ajudou a salvar as irmãs e sobrinhas de um quadro similar ao dela.
O DNA para pesquisa de mutação de BRCA 1 e 2 é extraído das células de uma amostra de sangue, que podem ser coletadas por qualquer pessoa e sem necessidade de nenhum preparo prévio. A recomendação da Sociedade Americana de Oncologia é que todas as mulheres com menos de 65 anos que tenham diagnóstico de câncer de mama, independentemente do histórico familiar, façam o teste genético.
“A cirurgia redutora de risco —ou profilática— reduz consideravelmente a chance de desenvolver um tumor de mama e ovário”, alerta Zuchetti. A remoção das glândulas mamárias é feita dos dois lados e antes dos 40 anos.
Já os ovários têm recomendação de remoção também bilateral, mas após os 40 anos. “É indicado que todas as mulheres com diagnóstico de mutação de BRCA 1 ou 2 realizem essas duas cirurgias profiláticas”, aponta a oncologista.
As glândulas mamárias são responsáveis pela produção do leite materno e não produzem hormônios no corpo. No caso de gestação, não será possível para as pacientes amamentarem, mas Zuchetti afirma que não há necessidade de nenhuma reposição hormonal e que a reconstrução das mamas femininas é feita com prótese de silicone, com procedimentos de cuidados pós-cirúrgicos padrão.
Zuchetti diz que os exames genéticos têm ficado mais acessíveis, mas ainda encontram barreiras para serem realizados via rede pública e até por convênios, mas que a expectativa para o futuro é que mais pacientes tenham acesso e possam realizar o teste.
A oncologista Mariana Scaranti, líder nacional da oncoginecologia da Dasa, diz que a pesquisa da mutação nos genes BRCA1 e 2 em paciente com câncer de ovário permite identificar aquelas que se beneficiam de terapia com drogas chamadas inibidores de PARP, bem como aquelas que precisam de maior vigilância quanto a tumores mamários.
“Os inibidores de PARP trouxeram enorme benefício com redução do risco de recorrência da doença em pacientes com câncer de ovário avançado e mutações em BRCA1 e 2. Em câncer de mama com critérios de alto risco de recorrência, a manutenção com inibidor de PARP após término de quimioterapia também trouxe benefício com aumento das chances de cura das pacientes”, diz a oncologista.
Scaranti lembra que para câncer de ovário não existe um exame de rastreamento eficaz e que a cirurgia de remoção em mulheres com mutação em BRCA 1 e 2 é fundamental para proteger essas pacientes.
“Conseguimos preservar a qualidade de vida dessas mulheres, bem como proteger a saúde cardiovascular e óssea com a reposição hormonal. Disseminar informação de qualidade sobre os benefícios da testagem em pacientes com câncer de mama ou ovário faz com que os mitos e medos sejam trocados pela segurança de se conhecer uma condição de estratégias individualizadas de prevenção e tratamento”, afirma a especialista.
A advogada Débora dos Reis Lopes, 41, diz que o teste foi fundamental para definir seu tratamento, que, além de quimioterapia, incluiu a retirada das duas mamas e dos ovários em vez de uma cirurgia mais conservadora apenas para remoção do tumor. “Fiz o exame porque fui diagnosticada com câncer de mama quando tinha 38 anos e eu tinha a variação no BRC1 com uma chance altíssima de recidiva. Fiquei triste. Não é uma decisão fácil e não a tomei no calor do momento. Trouxe algumas limitações, mas não me arrependo”, conta.
A variante vinha da família paterna e Lopes informou a todos para que realizassem também o exame. “Meu pai, irmão e irmã fizeram, não sei se minhas primas resolveram fazer, mas minha parte de informar eu cumpri. Se tivesse tido essa oportunidade de saber que tinha essa pré-disposição genética, ia querer. Não é fácil passar pelo diagnóstico e tratamento do câncer, é bem cruel. Então sou grata que a tecnologia e a medicina avançaram e, mesmo pagando particular, tive acesso ao teste”, avalia Lopes.
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