Uma empresa britânica com filial no Brasil está vendendo uma nova medida de combate à dengue dentro de casa. Por R$ 299, é possível comprar uma caixa com ovos de mosquito Aedes aegypti geneticamente modificados. É só pôr em água que, em até no máximo 14 dias, nascem apenas machos —as fêmeas, responsáveis pela transmissão do vírus, não sobrevivem—, e a eficácia é garantida por gerações.
A técnica funciona com a introdução de um gene autolimitante (tTAV) que interrompe o ciclo adequado das células do Aedes ao produzir em excesso uma proteína responsável por produzir outras proteínas essenciais necessárias para o desenvolvimento do animal, o que dificulta a capacidade das fêmeas de sobreviver até a idade adulta.
A ideia, fabricada pela empresa Oxitec, é reduzir a taxa de reprodução da própria espécie, diminuindo o número de fêmeas. A recomendação é que haja uso contínuo: uma caixa deve ser aberta a cada 28 dias. A solução, no entanto, é vista com ceticismo por especialistas.
“Acho que não faz grande diferença se uma casa ou um grupo pequeno de pessoas faz [uso], porque os mosquitos estão na vizinhança, no quarteirão, no bairro. Embora 80% das pessoas se contaminem dentro de casa, não quer dizer que o mosquito viva só ali. A impressão que eu tenho é que não dá para fazer isso sem o poder público”, diz o médico sanitarista Cláudio Maierovitch e antigo diretor de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde.
A empresa foi procurada pela Folha e não quis dar entrevista ou responder questionamentos, alegando que já havia tido problema com o veículo antes. Em 2023, o jornal noticiou o imbróglio judicial envolvendo a autorização para uso do produto com órgãos ambientais e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Até então, a empresa de biotecnologia se limitava a vender mosquitos para municípios, com a aprovação do órgão responsável pela autorização de organismos geneticamente modificados no país, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança. A Anvisa entrou na justiça e perdeu o processo em 1ª instância, e entrou com recurso e aguarda agora um novo julgamento na 2ª instância.
Na época, à reportagem, Luciana Medeiros, coordenadora de operações de campo dos programas de saúde na Oxitec disse que os estudos apontaram necessidade de, no mínimo, cinco mosquitos modificados para cada um selvagem a fim de manter a supressão dos insetos. A proporção seria alcançada considerando a quantidade de insetos expelidos nas caixas comercializadas pela empresa.
De acordo com José Maria Gusman, professor de agronomia da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e membro técnico da CTNBio que participou da avaliação da primeira versão do dispositivo, seria preciso uma quantidade muito grande de mosquitos para que a experiência fosse eficaz.
“A eficiência é discutível. Os mosquitos modificados competem com os machos e o resultado só poderá ser visto na próxima geração, se funcionar. Além disso, se você solta o mosquito, isso não garante que ele vai ficar na sua casa”.
Piracicaba (SP) investiu R$ 3,7 milhões na tecnologia após assinar um convênio em 2016 para que a Oxitec liberasse, por dois anos, os mosquitos e monitorasse, por outros dois, a área. No entanto, a empresa soltou menos da metade do número de insetos considerado adequado, não garantindo assim a proteção, que deveria ter sido alcançada em maio de 2018.
Outros experimentos da empresa nas cidades baianas de Juazeiro e Jacobina, entre 2013 e 2015, tiveram resultados controversos. Na época, a Oxitec fazia o teste em parceria com a empresa MoscaMed, com financiamento da Secretaria de Saúde da Bahia.
Segundo Gusman, que acompanhou um dos testes, os mosquitos não picavam, mas eram tantos que geravam incômodo na população. “Tinham muitas reclamações. Eles ficavam zumbindo na orelha das pessoas, e, seguramente, isso vai acontecer nas casas”, afirma. Pela aparência igual a do Aedes tradicional, ele diz que há ainda o risco de haver confusão entre ambos os tipos.
“Essa história vem há muitos anos, discutimos isso na Saúde, acompanhamos o projeto na Bahia e, naquele período, ficamos todos preocupados porque houve uma disputa entre a MoscaMed e Oxitec. A empresa ficou buscando o mercado, que não conseguiu no Ministério, foi buscar nos municípios e, agora tenta no mercado de varejo”, diz Maierovitch.
Há também preocupações em relação ao contato do inseto com uma substância chamada tetraciclina. O mosquito modificado é desenvolvido e é criado em um ambiente rico no composto. Ao ter contato com a substância, a fêmea não morreria na fase larval, o que poderia causar um efeito contrário no ambiente: em vez de diminuir o número de mosquitos, aumentaria.
A agência americana que regulamenta produtos ambientais (EPA, na sigla) autorizou, em 2020, a Oxitec a fazer testes-piloto da tecnologia com o mosquito em regiões da Flórida e da Califórnia. No entanto, em 2022, proibiu a liberação dos mosquitos em áreas situadas a menos de 500 metros de possíveis fontes do antibiótico tetraciclina, como estações de tratamento de esgoto, áreas produtoras de frutas e instalações pecuárias e granjeiras. Esse tipo de restrição não existe no Brasil.
Segundo Gusman, na época da liberação pela CTNBio, ainda havia muitas condições a serem verificadas.
À Folha, a CTNBio afirmou que a análise técnica considerou os mosquitos geneticamente modificados da empresa Oxitec tão seguros quanto os Aedes Aegypti não modificados, e, portanto, a decisão foi por sua aprovação para uso comercial.
Para Helena Dutra Lutgens, presidente da Associação dos Pesquisadores Científicos do estado de São Paulo, o dispositivo pode ainda criar uma falsa sensação de segurança e fazer com que os compradores reduzam ações que são comprovadamente eficazes contra a proliferação do mosquito, como a limpeza de calhas e de vasos de plantas. “Não existem muros e cercas para mosquitos. Não é uma segurança de fato”, diz.