Circulam pela internet comparações entre as enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul e o furacão Katrina, que afogou Nova Orleans em 2005. São difíceis de aquilatar, porque os dados variam, mas não resta dúvida de que a tragédia gaúcha deixará marca similar no imaginário brasileiro.
Na Louisiana morreram de 1.300 a 1.800 pessoas, dependendo da fonte. No RS a contagem estava em 169 nesta sexta-feira (31). Mesmo que ultrapasse duas centenas, o que parece provável diante de 44 então ainda desaparecidos, as cifras são incomparáveis.
No que respeita à área inundada, a proporção se inverte. Com 80% de Nova Orleans debaixo d’água, o alagamento correspondeu a 725 km2. No RS, imagens de satélite analisadas pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS indicaram mais de 4.600 km2.
A profusão de imagens de casas submergidas, com pessoas e animais resgatados de telhados por barco ou helicóptero, é chocante nos dois casos. Dezenas de milhares de desabrigados, centenas de milhares desalojados, milhões de impactados… pouco importa o número preciso para dar conta da enormidade.
A inundação de Nova Orleans demorou a se dissipar. As enchentes do Guaíba, do Taquari, da lagoa dos Patos e outras bacias gaúchas, por sua vez, vão e voltam com a repetição de chuvas torrenciais que já dura um mês. Um padrão cruel de flagelo, capaz de abater até o mais resiliente dos povos.
Não será surpresa se, após perder a casa ou todos os eletrodomésticos, móveis e recordações pela segunda vez em pouco tempo, ou ainda ter de tirar a lama do chão de novo e no frio, alguns habitantes decidirem deixar de vez Porto Alegre, Eldorado do Sul e outras cidades nos próximos meses. É mais que humano.
Nova Orleans até hoje não se recuperou por completo do Katrina. Cinco anos antes da inundação, a capital do blues contava 485 mil habitantes. Em 2006 a população tinha caído mais da metade, para 230 mil. Em 2002, ainda estava em 370 mil.
Embora na Louisiana pobres, negros e velhos também tenham sido os mais afetados pela hecatombe climática, como no Rio Grande, não se deve esquecer que os Estados Unidos são bem mais ricos que o Brasil. Muita gente lá tem seguro residencial, coisa que aqui, hoje, nem a classe média consegue pagar.
Os desafios do governo gaúcho e federal, nesse sentido, é bem maior que nos EUA. Fala-se muito em reconstrução após o salvamento, e também seria preciso falar em adaptação urbana e campestre ao novo anormal da mudança climática, mas antes será preciso criar maneiras de não deixar que as vítimas sucumbam ao desespero.
Solidariedade tem limite e prazo de validade, é horrível dizer. Passado o choque, doações recuarão, atingidos se acomodarão na penúria agravada, e a política retornará aos negócios usuais. Business as usual. Aliás, já retornou de onde nunca saiu, como se pode ver pela exploração do infortúnio nas redes antissociais.
Poucos conseguirão exceder em indignidade o senador pelo RS Hamilton Mourão (PR). Alegando ser septuagenário, o general golpista escudeiro de Jair Bolsonaro, qualificou seu eventual e sonegado engajamento na emergência como desvio de função –mesmo sendo especialista na atividade.
Parlamentares como ele, no Centrão bolsonarista, ruralista, armamentista e vigarista, avançam sem vergonha seus projetos de legislação antiambiental no conforto de Brasília. Só viajam aos pampas, de avião ou helicóptero, para simular operações de socorro e fazer fotos ou vídeos para postar.
Pensem bem antes de reelegê-los, gaúchos e demais brasileiros. Caso insistam em fazer do voto uma arminha, de novo, as vítimas poderão ser vocês.
Só lhes restará então torcer pela vingança poética de ver os voos deles ameaçados, como o da Singapore Airlines, por turbulências titânicas –outro tipo de evento extremo agravado pelo aquecimento global. Apertem os cintos.
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