Em apenas 23 segundos, a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para o projeto de lei (PL) 1904/24. O PL equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação, mesmo nos casos de gravidez resultante de estupro, ao crime de homicídio simples, cuja pena é de 6 a 20 anos de reclusão.
O regime de urgência significa que o PL pode ser aprovado em breve sem que antes seja discutido nas comissões da Câmara dos Deputados.
Esse PL é desumano e irresponsável. Demonstra a total desconexão entre as demandas sociais da população e a agenda do Legislativo, que deveria ser a casa do povo.
Qual a justificativa para o PL? Qual a justificativa para a urgência? Quantas meninas menores de 14 anos que engravidaram após serem estupradas foram ouvidas pelos parlamentares? Que dados foram coletados para entender as barreiras que existem no acesso ao aborto legal em casos de estupro?
A urgência deveria ser na punição do estuprador e na proteção de crianças e adolescentes.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de estupros no Brasil vem seguindo uma tendência de crescimento e chegou a quase 75 mil em 2023. Esse número contabiliza os casos que foram notificados à polícia, o que representa apenas 8,5% do total de casos, conforme mostrado em um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada publicado em 2023.
O perfil demográfico desses estupros revela iniquidades da sociedade e coloca em questão a racionalidade do PL. Especificamente, 88,7% das vítimas de estupro são mulheres, 61,4% são menores de 14 anos, 10,4% têm menos de quatro anos de idade e 56,8% são negras.
Traduzindo esses números de outra forma, 134 meninas menores de 14 anos foram estupradas por dia em 2023 e reportaram o caso à polícia! O total de vítimas, entretanto, deve passar dos 1.500 por dia.
As maiores taxas de estupro de meninas menores de 14 anos por 100 mil habitantes foram observadas em Roraima (163,7), Acre (117,8) e Amapá (114,4), todos na região Norte, que concentra a maior taxa de gravidez na adolescência no Brasil. Anualmente, cerca de 0,5% das mortes de meninas menores de 14 anos são devidas a complicações na gravidez, parto ou puerpério. Esse número deveria ser zero.
Uma análise dos dados de 2015 a 2020 estimou que apenas 3,9% das meninas entre 10 e 14 anos vítimas de estupro tiveram acesso ao aborto legal.
Segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, há 160 estabelecimentos cadastrados para realizar abortos legais nos casos de estupro, distribuídos em 108 municípios. Ou seja, apenas 1,9% dos 5.570 municípios brasileiros oferecem o procedimento.
Considerando os estados com maiores taxas de estupro de meninas menores de 14 anos por 100 mil habitantes, Roraima e Acre possuem estabelecimentos apenas na capital, e Amapá não tem nenhum.
Ter estabelecimento cadastrado não significa acesso direto. Dados do Mapa do Aborto Legal mostram a ausência de informações sobre aborto legal na maioria dos estados brasileiros. Além disso, uma pesquisa feita em 2019 com os estabelecimentos cadastrados mostrou que apenas 43% declararam fazer aborto legal, e muitos solicitam documentos não previstos em lei, como boletim de ocorrência e exame de corpo de delito, o que atrasa a realização do procedimento.
Além dessas barreiras, as vítimas de estupro menores de 14 anos enfrentam ameaças e subornos do estuprador (que em dois terços dos casos são familiares da vítima), sentimento de culpa e vergonha e a falta de capacidade de reconhecer o abuso e entender o que está acontecendo com seu corpo.
Aprovar esse PL é ceifar o futuro e a vida de meninas cujos direitos jamais foram respeitados.
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