Pesquisas feitas com mulheres em Altamira (PA), um dos municípios mais impactados pela usina hidrelétrica de Belo Monte, detectaram um aumento de casos de sífilis gestacional devido ao avanço do empreendimento, com explosão migratória, reassentamentos e rearranjo da lógica da cidade.
No Amapá, obras de usinas hidrelétricas levaram a um aumento da malária, especialmente em um dos municípios mais afetados, Ferreira Gomes. Estudos apontaram ainda um alto risco de endemia de leishmaniose em cidades impactadas pelas usinas.
Outros grandes projetos, como a Transamazônica, a BR-163 e a hidrelétrica de Tucuruí, ampliaram as ocorrências de arboviroses diversas, especialmente malária e febre amarela, como mostram pesquisas do Instituto Evandro Chagas, no Pará, vinculado ao Ministério da Saúde.
A ciência vem dimensionando os impactos à saúde pública causados por grandes empreendimentos na Amazônia. A ocupação desordenada, em que a floresta era tratada como um estorvo, foi uma marca da ditadura militar de 1964 a 1985.
O modelo prosseguiu em tempos democráticos, e grandes empreendimentos seguem ditando a lógica em porções amazônicas, com atropelo a comunidades tradicionais. Realidades são alteradas de forma irreversível, como a legião de pescadores que se viu sem peixe após Belo Monte.
“O desenvolvimento é dúbio. Trouxe muitos problemas com ele”, afirma Livia Caricio Martins, diretora do Instituto Evandro Chagas. “Ao longo do tempo, houve um grande número de mortes, especialmente por malária, febre amarela e leishmaniose.”
Martins integrou uma mesa formada só por pesquisadoras, que discutiram os impactos causados por grandes empreendimentos na região amazônica. Para isso, foram usadas pesquisas científicas feitas sobre esses impactos na saúde pública.
O painel integrou a programação da 76ª reunião anual da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), realizada em Belém até o próximo sábado (13), no campus da UFPA (Universidade Federal do Pará).
Na cidade que será sede da COP30 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), em 2025, a reunião da SBPC enfatiza discussões e produção científica relacionadas à Amazônia, com forte presença de pesquisadores amazônidas, que atuam em unidades e centros de estudo da região.
Um dos estudos feitos com mulheres de Altamira foi apresentado por Luisa Caricio Martins, do Núcleo de Medicina Tropical da UFPA. Os dados foram coletados por Amanda Duarte, professora da faculdade de Medicina da universidade em Altamira.
Sífilis é uma infecção sexualmente transmissível. Em gestantes, pode ser transmitida de mãe para filho por meio da placenta.
As pesquisadoras levantaram dados de 2008 a 2019. Uma primeira licença para Belo Monte foi concedida pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) em 2010. As obras tiveram um início efetivo em 2011. Em 2019, todas as 24 unidades geradoras da usina passaram a funcionar.
Nos dois anos que antecedem a construção de alojamentos para trabalhadores, 2008 e 2009, foram registrados menos de dez casos por ano de sífilis gestacional. Em 2010, já foram mais de 30. Em 2018, quase 70. E, em 2019, 50.
Ao todo, entre 2008 e 2019, foram registrados 499 casos de sífilis na gestação entre mulheres em Altamira. Os casos foram subindo ao longo dos anos, numa proporção bem superior aos indicadores nacionais da doença. Quase 92% dos casos se deram no espaço urbano.
A maior taxa de detecção da sífilis se deu entre gestantes no terceiro trimestre, com a constatação da doença na hora do parto. Houve um espalhamento da doença, com incidência em 49 bairros e RUCs (reassentamentos urbanos coletivos).
“O que se viu foi uma descentralização dos casos para a periferia da cidade e para os RUCs”, afirma a pesquisadora.
A maior parte dos casos foi entre meninas e mulheres de 15 a 24 anos. Nos bebês, a sífilis pode provocar cegueira, surdez, deformação óssea e dos dentes e deficiência mental, embora estes não tenham sido foco da pesquisa, concluída em 2023.
No Amapá, as quatro hidrelétricas existentes provocaram uma perda significativa de biodiversidade, com submersão de áreas de floresta, segundo a professora Rosemary Ferreira de Andrade, da Unifap (Universidade Federal do Amapá). Houve ainda redução de áreas de plantio de mandioca, de áreas de desova de peixes e realocação de comunidades.
Andrade diz ainda que houve maior incidência de infecções sexualmente transmissíveis, a exemplo do que ocorreu em Altamira, e aumento de casos de malária, além da ampliação dos riscos para a leishmaniose.
O Instituto Evandro Chagas monitora arboviroses e a eventual relação dessas doenças transmitidas por mosquitos com grandes empreendimentos na Amazônia. “Grandes projetos elevam a ocorrência de arboviroses”, explica Martins.
Segundo ela, o instituto já isolou 17 mil vírus, dos quais 36 estão associados a doenças humanas.
Em estudos sobre a Transamazônica, que corta o sul do Amazonas e o Pará rumo ao Nordeste, novos arbovírus foram identificados, afirmou a diretora. A BR-163, no Pará e Mato Grosso, gerou grande circulação de arbovírus, como o relacionado à febre do oropouche.
“Na barragem de Tucuruí, coletamos mais de 5 mil mosquitos por dia. Com a inundação pelo lago, os mosquitos buscavam alimento na população humana. É uma infinidade de arbovírus”, afirma ela.
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